19 julho 2016

DISSERTAÇÕES SOBRE «COMPAGNONS DE ROUTE»: DO MODELO CLÁSSICO DO SÉCULO PASSADO ATÉ AO DA MODERNIDADE DO SÉCULO XXI

Confesso que nunca percebi a presunção de os designar, aos originais (acima), por compagnons de route, aquele recurso ao francês para designar os simpatizantes comunistas mais intelectuais (ou mais pretensiosamente intelectuais...) que preferiam não ser reconhecidos como militantes disciplinados do partido. Talvez a disciplina estrita não se combinasse bem com os atributos da actividade intelectual. Há que reconhecer que o efeito amplificador do conjunto, gravitando à volta, mas não fazendo formalmente parte do núcleo, conferia-lhes, aos compagnons de route, um efeito de ressonância que ampliava a imagem dos próprios e a mensagem do núcleo. Já ouvi a expressão adoptada e validada muito depois disso por José Pacheco Pereira (que é o doutor em comunismo cá em Portugal), mas continuo a insistir que o conceito de comunista envergonhado e a expressão original terão aparecido na Rússia depois da Revolução de 1917 - poputchik ( попутчик) - e que a adopção da versão em francês em vez do russo original (ou então em vez da ainda mais despretensiosa tradução para o português) é um daquelas expressões de sofisticação que, por ironia, acaba desmentida pelos factos - quem é mesmo sofisticado deveria saber que a expressão fora roubada pelos franceses aos russos. Se a expressão é controversa, aqueles a quem ela se aplicava não o foram menos. Divagando por aqui e ali, algo dispersos e muitas vezes evitando ser assertivos nos assuntos mais correntes, nos momentos cruciais encontrávamo-los a (quase) todos na mesma trincheira e do mesmo lado, porque a filosofia de base era comum, por muito encapotada que a sintonia pudesse ser. Habilidosamente, não se defendia a invasão do Afeganistão pela União Soviética em 1979 (por exemplo), mas também não se a condenava; a veemência guardava-se para outros países que cometiam gestos hediondos desse género - os Estados Unidos no Vietname, por exemplo. Como então se dizia: o caso das invasões feitas pela União Soviética era mais complexo, precisava de uma análise mais aprofundada - que nunca chegava a conclusão alguma.

Lembrei-me mais recentemente das argumentações rebuscadas e retorcidas desses poputchiks do comunismo, quando alguém próximo de mim se manifestava surpreendido pelo que lhe parecia ser a inflexão da jornalista Helena Garrido em defesa das posições sancionatórias da Comissão Europeia. E surpreendi-me a pensar que a queda do Muro de Berlim extinguiu uma espécie de poputchiks para fazer surgir uma outra espécie nova, a dos poputchiks (ou compagnons de route) do liberalismo. No confronto entre vários modelos económicos e como alguém descreveu - e bem - de há uns dois anos para cá, o confronto não é entre a ortodoxia alemã (uma espécie de supply-side economics levada ao extremo...) e outras correntes de opinião, mas sim entre essa ortodoxia alemã e a realidade. A força da argumentação da ortodoxia alemão não derivará da pujança da sua arquitectura lógica mas tão somente da densidade política e económica de Berlim. Mas terá sido essa realidade que levou poputchiks como Helena Garrido a dissociarem-se progressivamente dos insucessos acumulados pela governação da coligação PSD/CDS sob a égide da troica. Mais de seis meses passados, contudo, o cerne da discussão voltou a recentrar-se, assumido o fiasco, naquilo que interessa. E a questão primordial será a da ideologia inspiradora do modelo económico para a União Europeia. Que, para estes poputchiks modernos do Século XXI, pode ser mais liberal ou pode ser menos liberal mas não pode ser outra coisa senão liberal - da mesma forma que no exemplo acima o que se permitia discutir era apenas o grau de benignidade do comunismo. Ora a Europa a que Portugal aderiu em 1986 era uma Europa suficientemente aberta para permitir a coexistência de vários modelos económicos. A de 2016 parece já não ser assim. Não sendo, é de equacionar a hipótese de tornar a sê-lo. E se não é de equacionar tal hipótese parece-me motivo para repensar a nossa permanência na União. Os poputchiks podem monopolizar a comunicação social mas não me impressionam.
Primeira imagem, na fotografia de cima e na primeira fila, da esquerda para a direita: José Manuel Tengarrinha, não identificado, Silas Cerqueira, António Vitorino de Almeida; na fotografia de baixo e também na primeira fila, pela mesma ordem: José Saramago, Piteira Santos, Rosa Colaço, Lopes Graça, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires e Urbano Tavares Rodrigues.
Segunda imagem, da esquerda para a direita e de cima para baixo, os poputchiks modernos: Rui Ramos, Paulo Baldaia, Camilo Lourenço, Helena Matos, José Gomes Ferreira, André Macedo, José Manuel Fernandes, Helena Garrido, David Diniz, João Marques de Almeida, João Carlos Espada e Fátima Bonifácio.

4 comentários:

  1. Portanto são todos iguais, é isso? Para encontrar diferentes seria porventura necessário ir buscar os "compagnons de route" de Mário Soares, mas compreendo que não se trata de fazer um comentário exaustivo - é selectivo, apenas.

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  2. Eu bem sei que o ditado popular diz que "burro velho não aprende línguas" mas o conceito de "poputchiki", tal qual foi definido originalmente por Trotski, é mais utilitário, mais desdenhoso e mais brutal do que o conceito ameno, apenas tonto e ingénuo, que costumo ver empregue para "compagnon de route".

    Por isso, se puder, leia em "Russia under the Bolshevik Regime (1919-1924)" de Richard Pipes (pp. 208 ss.) (https://www.amazon.co.uk/Russia-Under-Bolshevik-Regime-1919-24/dp/0002720884/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1469008909&sr=1-1&keywords=russia+under+the+bolshevik+regime) para perceber mais claramente do que se trata e de como a sua evocação de Soares foi descabida.

    Houve em Soares e naqueles que classifica de seus "compagnons de route" um lastro de tolerância ideológica que nada tem a ver com os casos dos devotos do comunismo e, agora, do liberalismo.

    Ou escrito de uma outra forma, mais perceptível: o "socialismo em liberdade" de Mário Soares não soava ridículo, ao contrário das "mais amplas liberdades democráticas" de Álvaro Cunhal ou o "atenuar das desigualdades sociais" de Pedro Passos Coelho.

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  3. A alternativa ao "liberal" que vem de liberdade (nomeadamente liberdade par mudar de opiniao) qual é mesmo...?

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  4. Recorrer à etimologia de que as ideologias se socorrem para se auto-designarem é todo um tratado de argumentação - fútil. Desafio o Buíça a ensinar-me de onde vem "comunista" e qual a alternativa. Infelizmente as práticas são feitas por quem abraça as ideologias e de quem as faz instrumento de militância. O que é muito mais complexo que uma mera questão gramatical.

    Numa ideologia, o nome porque é designada genericamente será o que menos importa, desde que soe bem.

    Respondendo ao que pergunta, a alternativa a "liberal", que soa bem, será algo que o não soe, como "destrambelhado".

    Imaginará a fundação de um "partido destrambelhadista português"? Pois bem, creio que receberei muitas opiniões concordantes que aquela designação descreveria com muito mais propriedade que Partido "Democrático" Republicano o partido fundado mais recentemente por Marinho e Pinto. Mas não se chama assim...

    E, deixe-me que lhe diga, Liberal pode não ter nada a ver com liberdade que eu já vi o número suficiente de liberais para ter a certeza que não.

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