12 outubro 2014

A GRANDE GUERRA

Por causa de um certo charivari mediático que se manifestou a pretexto do centenário do início da Primeira Guerra Mundial, faz coisa de uns dois a três meses, dispus-me a ver uma das séries de TV existentes a respeito do conflito, coisa que tenho feito compassadamente, tendo só ontem acabado de ver o último dos 26 episódios que compõem a série acima: The Great War. Não interessará detalhar aqui as razões da opção, mas valerá a pena explicitar a minha satisfação pela escolha. A série foi emitida originalmente em 1964 pela BBC por ocasião do cinquentenário do início da guerra. Entretanto, ao vê-la, apercebi-me por certas passagens, que estava a revê-la: a série já fora transmitida pela RTP, cerca de uma dúzia de anos depois da transmissão original no Reino Unido, ou seja em meados da década de 70, aproveitando o balanço do sucesso que constituíra entre nós The World at War, outra série televisiva também britânica e em moldes semelhantes, mas sobre o conflito seguinte, a Segunda Guerra Mundial. Lembro-me que à época, e considerando o encadeamento como as séries foram emitidas, The Great War foi um desapontamento porque aparecia televisivamente como um retrocesso em relação à sofisticação que se alcançara em The World at War, nove anos mais novo. Agora, quase quarenta anos escoados, com outra maturidade e outra cultura para apreciar o produto, a minha opinião evoluiu significativamente. Sabe-se, por exemplo, quanto a matéria-prima disponível (sobretudo os filmes) é infimamente mais escassa num caso do que noutro, quando se comparam os dois maiores conflitos do século XX. Mas os produtores de The Great War conseguiram material para 26 episódios de 40 minutos sem que se note haver uma carência de fontes filmadas. Por outro lado, não pude deixar de me sorrir quando vi os esforços de séries do século XXI em colorir os filmes de época para lhes emprestar mais realismo. É que o trabalho mais importante para tornar as imagens mais reais já fora feito pelos autores de The Great War ao dar-lhes som. Ao longo dos 26 episódios há um notável e discreto trabalho de sonoplastia, criando o som das imagens que estamos a ver e que nos chega a fazer esquecer que se trata de recriações porque os primeiros filmes sonoros só viriam a aparecer dez anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial...

Mas, para além dos aspectos técnicos e de apresentação, há o próprio conteúdo da série. Pelo facto de ela já ter cinquenta anos, há as vantagens e os inconvenientes disso. Entre as primeiras, os depoimentos dados na primeira pessoa por aqueles que viveram os acontecimentos, mesmo já então septuagenários¹, o que distingue a série de quase todas as outras mais recentes onde esses depoimentos são escassíssimos e muito menos relevantes. Detecta-se nesses depoimentos uma capacidade de sofrimento, uma resignação e uma sublimação – nunca houvera e não voltaria a haver uma riqueza literária, em prosa e poesia, como houve entre os combatentes da Primeira Guerra Mundial – desse sofrimento que chega a tornar-se incompreensível pelos padrões actuais. Em contrapartida, há a evolução da hermenêutica histórica, que faz da própria série um objecto de estudo da História, pela forma como tem evoluído a nossa compreensão sobre o conflito. É uma série datada. Em 1964 ainda Martin Middlebrook não escrevera, por exemplo, O Primeiro Dia no Somme (1971 – ainda não o escrevera, mas convém deixar claro que The Great War é uma série dominada pela perspectiva britânica da Guerra) que trouxe uma contribuição inestimável na forma de como o britânico médio, que se havia voluntariado para a guerra em 1914, teve o primeiro contacto com a guerra das trincheiras em 1916. Nestes últimos cinquenta anos apareceu uma infindável biografia registando uma evolução substancial na forma como se analisa actualmente a Grande Guerra². Mas isso será preocupação só de quem queira conhecer a História da Primeira Guerra Mundial mais em profundidade, o conjunto dos 26 episódios e as mais de 17 horas de documentário, são mais do que suficientes para o espectador comum. Falta a surpresa final: onde se pode adquirir e quanto custa The Great War. Com legendas em português, infelizmente não a encontrei; no original... não custa nada. Está disponível (por enquanto...) na internet. Adicionei a este poste o primeiro e o último episódio da série. Os restantes podem ser vistos no Youtube. Uma das maiores ironias dos tempos modernos é que nunca tivemos tão poucas desculpas para a nossa ignorância; aquilo que nos poderá faltar é tempo para a colmatar, e contudo, nunca dedicámos tanto tempo a justificá-la, à tal de ignorância...

¹ Em The World at War, filmado apenas 34 anos depois do início da respectiva (Segunda) guerra, pôde-se beneficiar até, com os 15 anos de bonificação, dos testemunhos prestados por altos responsáveis durante o conflito, como Anthony Eden (1897-1977), que fora o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros (1940-45), ou Albert Speer (1905-1981), o ministro alemão do Armamento (1942-45).
² Embora essa evolução se deva mais a aspectos teóricos do que propriamente ao aparecimento de novos factos como, por exemplo, aconteceu com The World War, que foi transmitida antes de deixar de ser secreto que os britânicos haviam descodificado os códigos alemães durante a Segunda Guerra com o sistema Ultra (1974) ou o manancial representado pelo abertura dos arquivos soviéticos depois de 1991 (Ex. Estaline sabia que Hitler estava morto e até onde estava enterrado: tinham sido os seus serviços secretos a fazê-lo...).

1 comentário:

  1. Excelente post. Apesar de se poder ver toda a série na internet, é pena não estar disponível com legendagem em Português. Este tipo de séries são documentos históricos a ver e a rever.

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