23 março 2014

A SUPERFICIALIDADE DE UM«A BALANÇA»

Ainda a propósito da crise da Crimeia e do elogio aqui deixado a Pedro Mexia por se mostrar disposto a ler substanciadamente sobre os antecedentes do assunto, ainda que em inglês, registe-se o contraste com Vasco Pulido Valente, que reputadamente já leu sempre tudo o que há para ler sobre qualquer assunto, especialmente em inglês, o que não o impede de escrever catedraticamente uma data de disparates, infelizmente em português, para aplauso de uma classe muito específica de admiradores seus que se mostra de uma ignorância muito intelectualizada.

Na sua crónica de ontem do Público, intitulada A Balança, Vasco Pulido Valente produziu uma análise histórico-estratégico-oracular sobre a importância da Crimeia para a Rússia, a começar pelo seu porto principal, o de Sebastopol no mar Negro, o «porto de águas quentes», «aberto o ano inteiro», «a via principal da influência russa no Ocidente. Militar e comercialmente, era insubstituível.» A crónica conclui-se com a analogia, previsível em Vasco Pulido Valente, com os eventos do Século XIX. É a opinião do cronista. Em contraste, há a realidade.

Sebastopol sempre foi sobretudo uma base naval. Foi essa a razão que levou a aliança anglo-francesa a escolhê-la como objectivo durante a Guerra da Crimeia (1853-56), como se explica de resto em páginas de Crimea de Orlando Figes que Vasco Pulido Valente deve ter saltado (p. 194 e ss.). A verdade é que o «grande porto de águas quentes» no mar Negro, tanto para o império russo como depois para o soviético nos Séculos XIX e XX foi o de Odessa. Como referi recentemente, no primeiro censo russo (1897), Odessa já era a quarta maior cidade do Império¹.

Significativamente quanto à importância dos dois portos, quando se deu a conhecida revolta no couraçado Potemkin em 1905, apesar do navio estar baseado em Sebastopol foi para Odessa que ele se dirigiu para fomentar a revolução. Ao longo do Século XX, excepto nos anos da guerra² (1941-45) e mesmo depois da queda da URSS, Odessa sempre permaneceu o maior porto do mar Negro embora não «um emblema do nacionalismo russo e da sua “porta aberta” para a Europa e para o Atlântico» – atributos poéticos atribuídos a Sebastopol pelo Vasco.

Actualmente, Odessa tem cerca de um milhão de habitantes e o seu porto movimenta mais de 30 milhões de toneladas de carga por ano (sensivelmente o dobro do de Leixões). Sabendo que Odessa é o maior porto ucraniano, lamento não ter conseguido encontrar dados para o movimento do porto de Sebastopol, embora considere significativo que a cidade tenha apenas ⅓ da população de Odessa. Mas deve ser aquilo tudo espectacularmente russo do modo que o Vasco Pulido Valente descreveu e como os seus indefectíveis admiradores gostam.

Como é que as suas conclusões podem ser sempre tão elogiadas de tão acertadas, se as premissas são falsas?

¹ Depois de São Petersburgo, Moscovo e Varsóvia.
² Ao contrário do que Vasco Pulido Valente sugere, e como já aqui expliquei neste blogue, a neutralidade turca e as regras da Convenção de Montreux de 1936 impediam que a União Soviética pudesse ser abastecida de material militar pelo mar Negro.

2 comentários:

  1. Se contar que à Rússia, mesmo sem a Crimeia, ainda lhes restava um bom pedaço do Mar Negro oriental e portos como o de Sochi (mesmo que este seja mais de passageiros).

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  2. Exacto João Pedro.

    Também se poderia precisar que dominar algumas partes das margens do mar Negro mas sem Constantinopla não se tem autonomia para ir para lado nenhum.

    Mas tentei que o texto da crítica não fosse muito mais extenso que o texto criticado, comprovando de forma demasiado óbvia que é muito mais fácil escrever um punhado de asneiras do que explicar porque o são.

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