02 novembro 2013

UM ESTUDO BRANCO – 1

Todos aqueles que gostam de literatura policial têm a sua fase em que se entusiasmam com o whodunit, aquele estilo em que se concede ao leitor as mesmas pistas que ao protagonista para que ambos tenham as mesmas hipóteses de vir a acertar na identidade do assassino, explicando os seus métodos e as suas motivações. Nos casos mais canónicos, a narrativa chega a ser interrompida para que se faça um formal desafio ao leitor, para que este, a partir dos dados que o autor lhe foi fornecendo, indique a identidade do assassino. O método tem o inconveniente de gerar uma lose-lose situation: quem acerta na identidade do assassino tem tendência a menosprezar o desafio por considerá-lo fácil e quem erra (o que é o mais frequente) fica frustrado. Tive a felicidade de, recentemente, reencontrar um pequeno conto policial daquele saudoso estilo que tanto me frustrou quando o li originalmente e que me convenceu, apesar das oito pistas que o autor dizia ter-me fornecido, que eu não estava definitivamente fadado para investigações policiais. O título do conto é Um Estudo Branco (A Study in White, no original), foi escrito em 1949 e o seu autor é um dos mestres do género chamado Nicholas Blake (1904-1972, na fotografia abaixo). Para dar aos leitores que se disponham a lê-lo um cheirinho do que é a frustração de não fazer a mínima ideia de quem foi o assassino apesar de todas as pistas, vou deixar que aos leitores a possibilidade de adivinhar a identidade do assassino, adiando a publicação das páginas com as explicações para daqui a mais uns dias...

– Bom tempo para a estação – observou o Homem Comunicativo com uma voz suculenta como se fosse o peito de um ganso assado. O Camarada Profundo, sentado ao lado dele no compartimento de comboio, olhou pela vidraça da carruagem para a neve que turbilhonava lá fora. E replicou:
– Gosta realmente disto? Para mim é apenas um nevão que não é bom para ninguém. Tudo dependerá do que o senhor entende por bom tempo. As características demonstraram que, nos últimos cinquenta anos…
– O senhor chama-se Joad? – Perguntou o Homem Comunicativo dirigindo uma piscadela ao compartimento inteiro.
– Não. Stansfield. Henry Stansfield. – O Camarada Profundo, um homem de rosto vermelho sentado com as mãos firmemente apoiadas nos joelhos do fato de boa fazenda castanha escura poderia ser tomado por um próspero comerciante não fosse o exame atento, longo e meditativo que fazia de cada um dos seus companheiros de viagem.
Aquilo que viu não lhe pareceria particularmente animador. No banco oposto, da esquerda para a direita, estavam sentados: uma Criatura Assanhada, que tomara a piscadela do Homem Comunicativo como se fosse exclusivamente para si e conseguira puxar a saia estreita ainda mais para cima dos joelhos; um homenzinho murcho, desinteressado, com cara de rábula, que fumegava e se agitava como uma chaleira frenética, consultando de cinco em cinco minutos o relógio de ouro e desdobrando o The Times com o estalar de um documento legal; e mais um Sujeito Negligente, vestido com apurada negligência, o olhar atrevido mas inquieto do jovem delinquente.
– Pois eu chamo-me Percy Dukes – disse o Homem Comunicativo – P.D. para os amigos. Comerciante Geral, às suas ordens. Bem, atravessaremos a fronteira daqui a uma hora e meia e depois ver-nos-emos entre as campânulas da formosa Escócia.
– Campânulas em Janeiro? O senhor é optimista – observou a Criatura Assanhada.
– O senhor é escocês? – Perguntou a Senhora Prazenteira sentada à esquerda de Stansfield.
– Inglês, por fora – Percy Dukes apalpou a frente do fato cinzento, tirou um frasco de uísque do bolso de trás das calças e bebeu um trago – …e escocês por dentro.
As suas gargalhadas ou o nevão sacudiram a carruagem. A Criatura Assanhada procurou reprimir uma risadinha.
– Ainda precisará mais disso se a via estiver bloqueada pela neve e tivermos de passar a noite no comboio – disse Henry Stansfield.
– O senhor chama-se Jonas? – E o compartimento da carruagem foi novamente sacudido.
– Não receio essa eventualidade. – Acudiu o Rábula Frenético – O Chefe da Estação em Lancaster garantiu-me que o comboio passaria. Entretanto, já estamos escandalosamente atrasados.
E o relógio de ouro foi mais uma vez consultado.
– É uma coisa curiosa – observou pensativamente o Camarada Profundo – a maneira como imaginamos poder fazer com que o Tempo caminhe ou galope apenas com uma consulta aos ponteiros de um relógio. Viaja muitas vezes neste comboio, Mr…?
– Kilmington. Arthur J. Kilmington. Não, só viajei uma outra vez – o Rábula Frenético falava com o sotaque seco de Edimburgo.
– Ah, sim. Deve ter sido no dia 17 do mês passado. Lembro-me de o ter visto.
– Não, engana-se. Foi no dia 20 – E a boca fina de Mr. Kilmington voltou a apertar-se como um elástico em torno de um rolo de documentos legais.
– No dia 20? Não me diga! Então foi no dia do assalto ao comboio. Um belo golpe, segundo parece. A este mesmo comboio extraordinário de Natal. As malas postais desapareceram literalmente de qualquer ponto entre Lancaster e Carlisle.
– Francamente – suspirou a Senhora Prazenteira – não sei onde vamos parar nos dias que correm.
– À cena do crime, minha senhora – disse o comunicativo Mr. Dukes. O comboio, quase sem forças, dava os últimos arrancos para atingir Shap Summit.
– Não li nos jornais nenhuma referência ao lugar onde se realizou o assalto – murmurou Henry Stansfield. Dukes fitou-o com uns olhos quase turvos.
– O senhor lê os jornais todos?
– Todos.
A atmosfera do compartimento tornara-se subitamente tensa. Só o Sujeito Negligente, examinando ocasionalmente as unhas, parecia indiferente:
– Em que jornal leu isso? – Insistiu Stansfield.
– Não li. – Dukes bateu nos joelhos de Stansfield. – Mas sei usar os miolos. Reflicta um pouco. O senhor quer tirar uma mala de um comboio – compreende? O comboio precisa de ir devagarinho, para que a mala não arrebente quando for atirada ao chão. Só há um ponto entre Lancaster e Carlisle onde se sabe que o comboio se arrasta. Shap Bank. E perde velocidade ainda no último trecho, isto é, onde estamos agora. Compreende?
Henry Stansfield fez que sim com a cabeça.
– Muito bem. Mas seria uma loucura atirar a mala num ponto qualquer desta charneca abandonada. – Prosseguiu Mr. Dukes – Ora, se viajasse tanto por esta linha como eu, teria notado que o comboio atravessa uma ponte cerca de uma milha antes de chegar ao cimo. Por baixo da ponte passa uma estrada: uma linda estrada solitária, compreende? A única estrada das proximidades que atravessa uma via-férrea. O senhor atira a mala nesse sítio. Os seus amigos apanham-na, descem a correr para a estrada, atiram a mala para dentro do carro que está à espera debaixo da ponte e pronto!
– O senhor devia ser detective! – Exclamou languidamente a Criatura Assanhada.
Mr. Dukes enfiou os polegares nas axilas e pareceu satisfeito.
– Talvez o seja. – Respondeu com um sorriso prazenteiro – E talvez seja apenas o velho P.D. que sabe usar os seus miolos.
– Vejam só as coisas que se fazem! – Ponderou a Senhora Prazenteira. – Há muita desonestidade hoje em dia.
O Sujeito Negligente levantou o olhar desdenhoso das unhas. Ouviu-se Mr. Kilmington murmurar que o serviço de vigilância nos caminhos-de-ferro era deplorável e que o guarda do comboio deveria ter sido severamente admoestado.
– O guarda não pode estar em toda a parte – acudiu Stansfield. – Ele evidentemente precisa de fazer uma ronda ao comboio de vez em quanto e…
– Então que a faça mas não se feche no seu lugar nem se ponha a dormir – atalhou Mr. Kilmington sem muita lógica.
– Fala por experiência própria? – Perguntou Stansfield.
O Sujeito Negligente levantou a voz e exclamou com sotaque de malandro americano:
– Mas se a quadrilha pretendia roubar as malas postais ao passar pelo tal ponto que diz este senhor, como poderia ter a certeza que o guarda não estava lá precisamente nesse momento? – E puxou as calças de xadrez, vistosíssimas.
– Tem razão. – Disse Percy Dukes – O que eu imagino é que deveria haver dois cúmplices no comboio: um para fazer o guarda sair sob um pretexto qualquer e outro para tirar as malas. – Voltou-se para Mr. Kilmington. – O senhor disse qualquer coisa sobre o guarda se ter fechado no seu vagão. Ora, se eu fosse desconfiado, se fosse o velho Sherlock Holmes em pessoa – e dirigiu mais uma prodigiosa piscadela de olho aos companheiros de viagem de Mr. Kilmington – começaria a pensar no senhor. Viajava no comboio quando se deu o assalto. Foi até ao vagão do guarda. Diz que o encontrou a dormir. Não terá, por acaso, chamado o guarda para…
– A sua sugestão é insultuosa! Aconselho-o a ter muito cuidado, muito cuidado! – Sibilou Mr. Kilmington com uma voz indignada. – De contrário ainda acabará por descobrir que disse qualquer coisa pela qual poderá ser processado. Quero que saiba isso para o caso de eu…
Mas, fosse qual fosse o caso, nunca ninguém o soube. O comboio que, havia já algum tempo, vinha a descer cautelosamente de Shap Summit, começou a ranger de repente e a tremer como um doente febril e delirante ao aplicarem-lhe os freios; depois, com o impacto surdo de um punho a esmurrar um travesseiro de penas, a locomotiva enterrou-se num monte de neve que se formara numa curva logo após uma trincheira profunda.
Eram 7 e 5.
– Que foi? – Perguntou a Criatura Assanhada com voz aguda, quando a locomotiva se pôs a soprar histericamente.
– Com certeza, estamos bloqueados.
– O maquinista está a tentar sair fazendo marcha atrás. Não adianta. As rodas escorregam muito. Que maçada! – Percy Dukes deitara a cabeça de fora da janela, do lado em que não soprava o vento – Vá a Cumberland para os desportos de Inverno!
– Guarda! Guarda! – Chamou Mr. Kilmington. Mas o homem vestido de azul, depois de um olhar ao compartimento continuou a correr – Francamente! Tenho de fazer queixa deste homem.
– Saindo para o corredor, Henry Stansfield abriu uma janela. Embora a carruagem estivesse teoricamente protegida pelo barranco da trincheira naquele local, o nevão esbofeteou-lhe o rosto. Reuniu-se ao grupo de passageiros que tinha descido do comboio e se dirigia com dificuldade em direcção à locomotiva. Quando a alcançaram, o guarda assomou à entrada da cabina da máquina: não havia motivo para alarme, disse ele, se não pudessem atravessar o bloco de neve viria uma máquina de socorro para levar de novo o comboio para trás, para Penrith; ele ia naquele momento colocar os sinais de neblina atrás da última carruagem.
O maquinista fez novas tentativas para recuar o comboio. Mas, em virtude do peso da composição, do declive que havia atrás, dos trilhos escorregadios e da neve que prendia a máquina, os seus esforços foram vãos.
– Precisamos libertar as rodas da frente, companheiro – disse ele para o fogueiro. – Traga as pás. Isso, de qualquer modo, impedirá que se morra de frio.
E apontou o dedo para o grupo de passageiros que, iluminados pelo clarão da fornalha, pulavam e gesticulavam como selvagens entre os flocos da neve.
Percy Dukes, que agora se reunira a eles, logo se converteu na alma do grupo, chamando ao fogueiro de rosto sujo “Bola de Neve”, incitando os companheiros a “Cavar para a Vitória”, fingindo reconhecer a aproximação de um bando de São Bernardos com barriquinhas de conhaque amarradas ao pescoço. Mas, depois de dez minutos de trabalho insano, quando as rodas mestras ficaram desentulhadas, verificou-se que elas haviam descarrilado ao chocar contra o bloco de neve.
– Não adianta Charlie. É preciso ir à cabine mais próxima da via para telefonar a pedir auxílio – disse o maquinista.
– Isso se os fios estiverem no lugar – respondeu lugubremente o fogueiro. – A cabina fica a mais de uma milha daqui e até lá é sempre a subir. Quem pensa que sou? O Capitão Scott?
– Terá o vento pelas costas, companheiro. Até logo.
Um murmúrio de consternação elevou-se do grupo de passageiros que ouviam o diálogo. Um ou dois, que principiavam a lamentar-se, foram reduzidos ao silêncio pelo oferecimento do maquinista que se prontificou a levá-los onde quisessem se o ajudassem a colocar a locomotiva outra vez nos trilhos. Quando os outros se dispersaram, dirigindo-se para as respectivas carruagens, Henry Stansfield pediu licença ao maquinista para entrar na cabina durante alguns minutos a fim de enxugar a roupa.
– À vontade – resmungou o maquinista. – Imagine que eu precisava de estar em Glasgow hoje à noite. Mas Bert – o guarda – está pior que eu. A mulher dele esteve muito mal. Tão mal que ele pensou que ela se acabava antes do Natal; mas Bert conseguiu o melhor cirurgião de Glasgow para operá-la e, segundo diz, a mulher agora está a melhorar. Mas queria ir vê–la todas as noites ao hospital depois de deixar o serviço.
Stansfield conversou com o homem durante cinco minutos. Depois o guarda regressou a soprar as mãos. Era um homenzinho miúdo, de pele endurecida com um brilho de ansiedade nos olhos.
– Não vamos conseguir chegar esta noite, Bert. Charlie já lhe contou?
– Já. Creio que alguns passageiros são capazes de armar um pé-de-vento por isso – disse o guarda tristemente.
Henry Stansfield regressou à sua carruagem. Embora abafada, dava uma sinistra impressão de frio: pôs–se a imaginar quanto tempo funcionaria ainda o sistema de aquecimento: tudo dependia da quantidade de água na caldeira da máquina, supunha. Entre a imensa variedade de destinos que imaginara para si, não incluíra a morte pelo frio num comboio inglês.
Arthur J. Kilmington agitava-se cada vez mais. Quando o guarda apareceu no corredor, perguntou-lhe onde ficava a aldeia mais próxima, dizendo que precisava de fazer uma chamada para Edimburgo – onde tinha um encontro urgentíssimo – para avisar o cliente que não poderia comparecer. O guarda respondeu-lhe que havia uma aldeia a duas milhas a nordeste, a qual se podia avistar do cimo do barranco; mas aconselhou-o a não ir debaixo daquele nevão – seria melhor esperar a locomotiva de socorro que deveria chegar antes das nove.
O silêncio reinou no compartimento durante algum tempo; o incrédulo silêncio de pessoas civilizadas que se encontravam na situação de náufragos. Depois o comunicativo Mr. Dukes propôs que, devendo ficar ali fechados durante uma ou duas horas, todos se apresentassem. A Senhora Prazenteira apresentou-se como Mrs. Grant, a Criatura Assanhada como Inês Blake; o Sujeito Negligente, com o ar super-negligente de quem atira uma moeda falsa sobre um balcão, declarou o seu nome: MacDonald - I. MacDonald.
A conversa voltou ao assalto do comboio e aos criminosos que o haviam realizado.
– Devem ser muito espertos – observou Mrs. Grant com o sotaque cantante das Lowlands.
– Nenhum criminoso é esperto, minha senhora – disse tranquilamente Stansfield, alternando o olhar pensativo entre MacDonald e Dukes. – Nem os pequenos, nem os grandes. São todos perfeitamente sub-humanos. Um pouco de astúcia, muita cobardia e o resto é estupidez e bazófia. São tão estúpidos que não prestam para nada senão para o crime, e com sentimento de inferioridade tão acentuado que, mais cedo ou mais tarde, se acabam por trair por tanto se gabarem dos próprios crimes. Gostam de julgar-se importantes, mas não valem nada, não têm sequer suficiente habilidade para modificar os seus métodos profissionais: é assim que a polícia os apanha.
– Concordo inteiramente com o senhor – anuiu Mr. Kilmington. – Estou, na minha profissão, constantemente em contacto com as classes criminosas. E orgulho-me de nenhum deles me ter conseguido levar a palma. São transparentes, senhor, são transparentes.
– Não há dúvida que os senhores têm razão – disse Percy Dukes prazenteiro. – Mas a polícia ainda não apanhou os indivíduos que roubaram este comboio.
– Mas há-de apanhar. E apanhará também a pulseira de esmeraldas da condessa de Axminster. Garanto que a quadrilha nem sequer esperava ir encontrá-la na mala-posta. Vale, pelo menos, 25 mil libras.
Percy Dukes quedou boquiaberto. O Sujeito Negligente assobiou. Sufocada, fosse pelo ar abafado do compartimento, fosse pela ideia das esmeraldas que valiam 25 mil libras, Inês Blake soltou um gemido e desmaiou sobre o colo de Mr. Kilmington.
– Francamente! Ora esta! Minha prezada menina! – Exclamou o Rábula Frenético. Seguiu–se um solícito alvoroço de que participaram todos os passageiros excepto o jovem MacDonald de olhos frios que, depois de se inclinar sobre ela por um instante, com as costas voltadas para os outros, exclamou: – Ouça! Pare de sacudir a rapariga e deixe-a deitar-se no banco. Sim, estou a falar consigo, Kilmington.
– Atrevido! Isso é um insulto! – O homenzinho ergue-se tão repentinamente que a rapariga quase caiu – Eu estava apenas a tentar…
– Conheço bem os da sua espécie. Velhinhos manhosos. Tire-lhe as mãos de cima. Estou a mandar-lhe!
No silêncio escandalizado que se seguiu, Kilmington gaguejou qualquer coisa para MacDonald sem poder articular bem uma única palavra; depois, vendo os relâmpagos que se desprendiam dos olhos acerados do rapaz, tirou o chapéu preto e a pasta, colocados na rede de bagagens e precipitou-se para fora do compartimento. Henry Stansfield fez menção de o deter mas mudou de ideias. Mrs. Grant seguiu o homenzinho para fora do compartimento e voltou logo a seguir com um lenço ensopado em água para esfregar a testa de Miss Blake. Eram exactamente 8 e 30.
Quando tudo voltou à normalidade, Mr. Dukes virou-se para Stansfield:
– O senhor dizia que esse colar de – de quem era? – da condessa de Axminster vale 25 mil libras? Imagine agora mandar uma coisa de tanto valor pelo correio! Tem a certeza?
– Do valor? Tenho – Henry Stansfield falava com o canto da boca, como um homem estúpido que segredasse uma confidência – Não diga a ninguém. Mas um amigo meu trabalha na Cosmopolitan, a companhia onde a jóia fora segura. Esse foi outro detalhe que os jornais não deram. Mulher tola. Queria-a para qualquer festa de família na Escócia no dia de Natal, esqueceu–se de a levar consigo, e escreveu para casa pedindo que lha enviassem numa encomenda registada.
– 25 mil libras! – murmurou Percy Dukes pensativo. – Eia!
– Sim, certas pessoas nem sabem a sorte que têm, não é verdade?
O rosto de Dukes tremelicou sobre os ombros como um naco redondo de toucinho. O jovem MacDonald polia as unhas. Inês Blake lia uma revista. Volvido um instante, Percy Dukes notou que o nevão diminuía: disse que ia dar uma volta e ver se havia sinais da máquina de socorro. Saiu do compartimento.
Pela janela viam-se agora dançar os flocos de neve às dezenas e já não aos milhares. Eram 8 e 35. Pouco depois Inês Blake saiu; e dez minutos mais tarde Mrs. Grant observou a Stansfield que a neve deixara completamente de cair. Nem Inês nem Dukes tinham voltado quando, às 9 e 30 Henry Stansfield decidiu perguntar o que acontecera à máquina de socorro. O guarda não estava na carruagem que ficava ao lado do compartimento de Stansfield na rectaguarda da composição. Por isso voltou, transpôs o corredor em direcção à carruagem da frente, desceu e gritou para a cabina da locomotiva.
– Deve ter ficado retida – disse o guarda, pondo a cabeça de fora. – Charlie já voltou e eles prometeram estar aqui às nove horas. Mas já não deve demorar.
– O senhor não viu por aí Mr. Kilmington – um homenzinho miúdo e enfezado – de chapéu e sobretudo pretos, fato azul, que estava na minha carruagem? Já inspeccionei o comboio inteiro e não o encontrei.
O guarda pensou por um momento.
– Ah, já sei! O tal sujeito que me perguntou se podia telefonar da aldeia? Deve ter-se ido embora, sim.
– Acha que ele foi a pé para a aldeia?
– Com certeza, se não está no comboio. Tornou a falar comigo – seriam mais ou menos umas nove horas – e disse que, se a máquina de socorro não chegasse dentro de cinco minutos, se iria embora.
– Não o tornou a ver depois disso?
– Não senhor. Estou a conversar aqui com os companheiros há uma meia hora, desde que esse senhor falou comigo.
Henry Stansfield voltou pensativo pelo leito da via. Quando ultrapassou o clarão projectado sobre a neve pelas luzes das carruagens, acendeu a lanterna eléctrica. Logo atrás da última carruagem o barranco oriental da trincheira descia quase a prumo até ao nível da charneca circunjacente que ficava à altura da via. Embora a neve tivesse deixado de cair inteiramente, ainda soprava um vento gelado vindo de nordeste que lhe fustigava e entorpecia o rosto. Vinte metros adiante, a lanterna iluminou um rastro, já meio coberto de neve, feito por diversos pares de pés e que se dirigiu para além da charneca, a nordeste. Dir-se-ia que vários passageiros se tinham dirigido para a aldeia, cujas luzes cintilavam à distância. Stansfield já se dispunha a seguir o rastro quando ouviu passos esmagando a neve acima da linha. Apagou a lanterna e teve imediatamente a impressão de que lhe haviam atirado um saco sobre a cabeça, tão espessa e ofuscante era a treva. Os passos aproximaram-se. Stansfield acendeu a lanterna no derradeiro instante, iluminando a figura atarracada de Percy Dukes. O homem abafou uma imprecação:
– Que diabo! Que ideia foi essa de me deixar meia hora à espera nesta…?
– Viu Kilmington?
– Oh! É o senhor! A que propósito é que eu o haveria de o ver? Ele não está no comboio? Eu estava justamente a subir a linha para procurar socorro. Nenhum sinal ainda. Faz um frio medonho… Vou-me embora.
Stansfield também se afastou mas seguindo o rastro que se dirigia para a aldeia. O círculo da lanterna hesitava e saltava sobre a neve espessa. O vento, que lhe batia no rosto, era atroz. Não é de admirar, pensou, ao encontrar o fim do trilho, depois de percorrer uma centena de metros, que os passageiros tivessem voltado para trás. Depois compreendeu que nem todos tinham voltado. O que ele imaginara ser um monte de neve imitando grosseiramente uma figura humana deitada verificou ser, de facto, uma figura humana coberta de neve. Retirou um pouco de neve que a cobria e voltou-a.
Arthur J. Kilmington nunca mais se irritaria neste mundo. A pasta ficara enterrada debaixo dele; o chapéu preto jazia no sítio onde caíra, levemente coberto de neve, perto da cabeça. Por aquele rápido exame, não pareceu a Stansfield que houvesse nele marcas de violência. Mas os olhos estavam salientes, o rosto assumira uma coloração azul-avermelhada. É assim que ficam os homens estrangulados, pensou Stansfield, ou asfixiados. Tornou a ajoelhar-se rapidamente, iluminando com a lanterna o rosto morto. Uma repentina sensação de horror apoderou-se dele. As narinas de Mr. Kilmington estavam cheias de neve que se solidificara dentro delas e a neve também lhe enchia a boca.
E lá ficaria ele, reflectiu, naquele sítio desolado, dias ou talvez semanas inteiras, se a neve continuasse a cair. E, quando chegasse o degelo (como, de facto, só chegou àquele local dois meses depois), a neve descongelar-se-lhe-ia também na boca e nas narinas e não ficaria qualquer vestígio de assassínio – só o cadáver de um advogadozinho impaciente que tentara alcançar uma aldeia durante um nevão e morrera no meio do caminho. Talvez até ninguém soubesse por que um indivíduo tão metódico e tão aborrecido se abalançara à caminhada de duas milhas com aqueles sapatos e sem uma lanterna que lhe iluminasse o caminho no meio de uma noite escura como breu pois, revistando-lhe os bolsos, encontrara os seguintes artigos e nada mais: uma agenda, uma caneta de tinta permanente, um lenço, uma cigarreira, um isqueiro de ouro, duas cartas e algum dinheiro trocado.
Stansfield resolveu voltar para pedir auxílio. Mal percorrera porém vinte metros quando notou que outro rastro se desviava do trilho principal e se dirigia para a esquerda. Este último parecia mais recente – a neve depositara-se em menor quantidade sobre as passadas – feito por um único par de pés. Seguiu-o, caminhando ao lado dele. Quem quer que tivesse deixado aquele rastro caminhara formando uma leve curva para a direita, na direcção dos carris, alcançando–os a uma centena de metros do lugar onde começara o rastro principal. Nesse local havia uma barraca de assentador. Encontrando a porta apenas fechada pelo trinco, entrou. Não viu nada lá dentro senão um lume de carvão inteiramente frio e um cheiro a fumo de charuto…
Meia hora depois voltou à sua carruagem. Nesse intervalo ajudara os empregados do comboio a transportar o cadáver de Kilmington, que agora estava fechado no compartimento do guarda. Descobrira também um pormenor interessante sobre os movimentos de Kilmington. Era de presumir-se que, após a altercação com MacDonald e a rápida conversa já referida pelo guarda, o advogado tivesse ido sentar-se noutro compartimento. A última carruagem, atrás do compartimento do guarda, era de primeira classe e estava quase vazia. Mas, num dos seus compartimentos, Stansfield encontrara um passageiro a dormir. Acordara-o, fornecera uma descrição de Kilmington e perguntara-lhe se o tinha visto.
O passageiro informara-o, estremunhado, que um homenzinho de sobretudo escuro, debaixo do qual apareciam as calças de um fato azul, chegara até à sua porta e com ele trocara algumas palavras. Não, não lhe observara bem o rosto, pois estava com sono, e além disso o homem tirara polidamente o chapéu preto para se dirigir a ele e a posição em que deixara o chapéu enquanto falava ocultara–lhe quase todo o rosto que não se encontrasse escondido pela travessa da porta. Não, o homem não entrara no seu compartimento: ficara do lado de fora, perguntara que horas eram (o passageiro consultara o relógio e dissera-lhe que eram 8 e 50) e depois declarara que, se o socorro não chegasse até às nove, pretendia ir a pé até à aldeia mais próxima.
Stansfield dirigira-se então à cabina da máquina. O guarda, que lá estava, contara-lhe haver subido pela linha cerca das 8 e 45 para encontrar o fogueiro que voltava da cabine de sinalização. Chegara até ao ponto em que antes deixara os sinais de neblina; lá, pouco antes das nove, o fogueiro e ele haviam-se encontrado, o que foi confirmado pelo primeiro. Voltando para o comboio, o guarda subira para a última carruagem, vira Kilmington sentado sozinho num compartimento de primeira classe (ocasião em que o advogado lhe anunciara a sua intenção de ir a pé se a máquina de socorro não chegasse dentro de cinco minutos). O guarda descera então novamente do comboio e, pela linha, chegara à cabina da locomotiva, onde ficara a conversar com os companheiros.
Os factos pareciam provar que Kilmington havia sido assassinado pouco depois das nove, reflectiu Stansfield, ao voltar para o seu compartimento. Os companheiros de viagem lá estavam todos agora.
– Então? Encontrou-o? – perguntou Percy Dukes.
– Kilmington? Encontrei-o. Enterrado na neve, lá em baixo. Morto.
Inês Blake soltou um gritinho afectado. A permanente expressão escarninha dos olhos do jovem MacDonald dissipou-se como por encanto e o seu rosto assumiu uma palidez mortal. Mr. Dukes chupou os lábios gordos.
– Pobrezinho! – exclamou Mrs. Grant. – Quer dizer que ele foi mesmo a pé? Morreu de frio, não foi?
– Não, senhora. – anunciou Stansfield sem rodeios – Foi assassinado.
Desta vez Inês Blake gritou de verdade; e, como um eco, um silvo agudo ouviu-se ao longe: era a máquina de socorro que por fim chegava.
– A polícia está à nossa espera em Penrith, de modo que é melhor aprontarmos todos as nossas histórias – Stansfield voltou-se para Percy Dukes. – O senhor, por exemplo, onde esteve entre as 8 e 55, quando saiu do compartimento, e as 9 e 35, quando o vi voltar? Tem a certeza que não viu Kilmington?
Já muito menos comunicativo, os olhos porcinos enterrados na banha do rosto, Dukes perguntou a Stansfield quem diabo se julgava ele.
– Um investigador ao serviço da Companhia de Seguros Cosmopolitan. Antes disso fui inspector de detectives na C.I.D. Aqui está a minha caderneta.
Dukes mal a examinou.
– Está bem, amigo. Eu só queria ter a certeza. Não se pode confiar em ninguém hoje em dia – a voz soava-lhe com a cordialidade aliciante, oleaginosa, do pequeno homem de negócios que tenta arrancar um contrato a um industrial. – Fui apenas dar uma volta, sabe como é: para esticar as pernas. Não vi ninguém.
– Quem esperava encontrar? Não ficou à espera de alguém na barraca do assentador, fumando um charuto enquanto esperava? Por quem me tomou ao dizer-me: «Que ideia foi essa de me deixar à espera meia hora?».
– Devagar, devagar, meu amigo! – Percy Dukes parecia ofendido. – Estive, de facto, no barracão; fumei um charuto durante algum tempo. Depois voltei para o comboio e encontrei-me consigo no meio do caminho. Mas não marquei encontro com ninguém…
– Bem, bem, eu preciso de contar – atalhou virtuosamente Miss Blake. E contou, de facto, a Stansfield que, ao sair do compartimento logo depois de Dukes, ouvira vozes na entrada, perto do lavatório. E prosseguiu, indicando Dukes com a cabeça: – Reconheci a voz deste cavalheiro. Ele disse qualquer coisa parecida com isto: «Você vai ajudar-nos de novo, meu velho, e é melhor acostumar-se a essa ideia. Está metido nisto até aos colarinhos e não pode já recuar». Depois outra voz, uma espécie de resmungo, podia ser Mr. Kilmington – não sei – com sotaque escocês – disse: «Está bem. Vamos encontrar-nos daqui a cinco minutos: num barracão da via, a uns cem metros seguindo a linha. Depois conversaremos».
– E que fez a menina? – perguntou Stansfield.
– Encontrei um senhor meu amigo que viajava noutra carruagem e fiquei a conversar com ele.
– Ah, sim? – acudiu ameaçador o jovem MacDonald – Vai ver, ordinariazinha! Eu…
– Cale a boca! – ordenou Stansfield.
– É verdade – insistiu a rapariga, sem dar atenção a MacDonald. – Posso até apresenta-lo, se o senhor quiser. Ele lhe dirá que estive em sua companhia pelo menos durante meia hora.
– E o senhor que fez, Mr. MacDonald?
– Não digo. – replicou o rapaz.
– Mr. MacDonald não quer dizer. E Mrs. Grant?
– Fiquei neste compartimento desde aquele momento.
– Desde que momento…?
– Desde que saí para molhar o lenço para aquela menina, quando ela desmaiou. Lembra-se de que Mr. Kilmington saiu logo à minha frente? Eu vi-o entrar na carruagem do guarda.
– Ouvi–o dizer qualquer coisa a respeito de ir a pé até à aldeia?
– Não, senhor. Ele só entrou a correr no compartimento resmungando umas tolices.
– Que tolices?
– Que a carruagem desta vez não estava fechada e que ia fazer queixa do guarda por causa disso.
– Sim, sim. E a senhora esteve aqui sentada com Mr. MacDonald o tempo todo?
– Estive sim, senhor. A não ser uns dez minutos, mais ou menos, em que ele saiu do compartimento, logo depois do senhor.
– Porque saiu? – perguntou Stansfield ao rapaz.
– Para tomar um pouco de ar, velhote.
– E não estaria, por acaso, a tomar também o relógio de ouro de Mr. Kilmington? – Os olhos penetrantes de Stansfield cravaram-se como dois ganchos nos olhos de MacDonald, cuja expressão insolente se desvaneceu literalmente sob a força daquele olhar.
– Não estou a ver do que esteja a falar – exclamou, num derradeiro esforço fanfarrão. – O senhor não me pode fazer isso.
– Estou a dizer que foi assassinado um homem e que, quando a polícia o revistar, encontrará o relógio dele em seu poder. Isso não vai beneficiar em nada a sua situação, meu amigo.
– Não faça isso! Seja camarada! Foi apenas uma brincadeira! – lamuriou o infeliz MacDonald. – Ele irritou-me com aquela história de dizer que nunca fora ludibriado por ninguém. Por isso pensei que de devia mostrar-lhe… Eu queria devolver-lhe o relógio, juro que sim, mas não o consegui encontrar depois. Estou a dizer que foi apenas uma brincadeira! De mais a mais, foi Inês quem tirou o relógio do bolso dele.
– Ordinário! – refilou a rapariga.
– Calem a boca! Os dois! Poderão explicar a brincadeira à polícia de Penrith. Espero que eles não se escangalhem a rir!
Nesse momento, o comboio deu um solavanco e começou a subir a ladeira que antes descera. Parou na cabina de sinalização, onde Stansfield telefonou para Penrith e logo retomou a marcha para sul.
Na plataforma da estação de Penrith, Stansfield foi recebido por um inspector, por um sargento da polícia do condado e por um médico legista. E depois de uma pequena pausa na carruagem do guarda, onde o médico legista tirou o sobretudo preto do guarda, colocado sobre o cadáver, e iniciou o seu exame preliminar, dirigiram-se para o compartimento de Stansfield. O guarda, a seu pedido, fechara o compartimento à chave quando o comboio se aproximava da plataforma e vigiava os ocupantes, tornou a abri-la. O inspector entrou.
A primeira coisa que fez foi revistar MacDonald. Encontrando-lhe o relógio escondido, acusou MacDonald e Inês Blake do roubo. Em seguida, prendeu, por homicídio voluntário…
Desafio ao Leitor
– Quem foi que o inspector prendeu pelo assassínio de Arthur J. Kilmington?
O autor forneceu aos leitores nada menos que oito pistas; essas oito pistas são suficientes para indicar, por dedução lógica, não só a identidade do assassino mas também o motivo do crime e o método empregado para cometê-lo.

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