29 maio 2011

DE UM VALEDERO DE FICÇÃO A UM ÁRBENZ REAL

aqui falei de O Regresso do Fantasma, uma história de BD de Hermann & Greg de 1973. Recontando a síntese do enredo, o presidente (Juan Enrique Valedero) de uma República latino-americana (Monteguana) é vítima de um atentado que destrói o seu iate de cruzeiro e ao qual ele escapa por acaso. O navio dos nossos heróis (o Cormoran), acidentalmente por perto, recolhe-o, assim como aos seus dois guarda-costas, os únicos sobreviventes da tragédia. Antes de o poder comunicar, Valedero apercebeu-se que o atentado se tornara um pretexto para que houvesse um golpe de estado em Monteguana.
A morte do presidente já fora anunciada pela comunicação social de Monteguana sem que tivesse havido qualquer pedido de socorro, tanto do iate como do Cormoran. Os nossos heróis vêm-se assim associados aos esforços do presidente fantasma para recuperar o poder, enquanto os golpistas tentam eliminá-los a todos, tornando real a verdade oficial que fora entretanto antecipadamente proclamada. É nessa viagem para recuperar o poder que Valedero, um intelectual de ascendência europeia oriundo das elites do país, se apercebe que a realidade política do seu país é muito diferente da que imaginava…
A história acaba bem, com um presidente mais lúcido de um país retrógrado – veja-se como o soldado na imagem acima apenas o reconhece por causa dos selos do correio… Em O Regresso do Fantasma nota-se tanto a inspiração histórica do exemplo de Jacobo Árbenz, o presidente da Guatemala entre 1951 e 1954, como uma certa perspectiva ideológica europeia¹ que acreditava que o despotismo esclarecido bem intencionado de alguns dos membros das elites tradicionais poderia ser o catalisador para transformações sociais que derrubassem as oligarquias locais tradicionalmente apoiadas pelos norte-americanos.
Jacobo Árbenz (1913-1971) havia nascido de uma dessas famílias guatemaltecas, no caso de ascendência suíça e a natureza dotou-o, como se nota, com a pose aristocrática indispensável a quem pretende pertencer às elites. Por força das circunstâncias (o pai suicidara-se e a família passava por dificuldades financeiras) veio a matricular-se e graduar-se como oficial do exército em 1935 com um percurso académico brilhante. Dois anos depois tornava-se ali professor. E nos inícios de 1939 casava na sua classe, com uma filha de uma família de latifundiários salvadorenha. Entretanto começara a Segunda Guerra Mundial.
Os anos finais da Guerra foram um período de liberalização do continente, substituindo os regimes despóticos anacrónicos que os Estados Unidos haviam protegido, como era o caso do guatemalteco do General Ubico. O Capitão Árbenz, apesar da juventude (31 anos), já aparece associado aos movimentos militares que em 1944 vão acabar por conduzir à realização das primeiras eleições razoavelmente livres da História da Guatemala, que foram ganhas de uma forma esmagadora (cerca de 85% dos votos) por Juan José Arévalo, um académico intelectual, professor universitário e doutorado em Filosofia.
O período de seis anos (1945-51) da presidência de Arévalo foi uma época impar do usufruto de liberdades políticas na Guatemala que criaram condições para que a disputa política quanto à sua sucessão se tivesse travado nas urnas e não com armas como era a tradição do continente. Defrontavam-se a facção radical de inspiração marxista do movimento que colocara Arévalo no poder e a facção conservadora desse mesmo movimento, que pretendia estancar por ali a dinâmica entretanto criada. A primeira facção, protagonizada por Jacobo Árbenz, venceu as eleições presidenciais de 1951 com cerca de 60% dos votos.
A eleição de um esquerdista teve o condão de colocar a até então ignorada Guatemala no mapa das preocupações norte-americanas, atenta ao que a então recém-criada CIA designava por penetração soviética na América Latina. O detonador das inquietações foi a intenção, manifestada por Árbenz, em realizar uma Reforma Agrária², problema capaz de desencadear um conflito entre os interesses guatemaltecos e norte-americanos, com a multinacional United Fruit Company (a maior empresa mundial de comércio de frutos tropicais) de permeio como a maior empregadora e a maior latifundiária do país.
As operações da CIA que conduziram ao derrube de Árbenz, criando e treinando um exército dito rebelde, promovendo uma guerra de propaganda e algumas manobras de diplomacia de canhoneira tornaram-se exemplos das guerras sujas desenvolvidas por aquela organização para estes casos. O regime acabou por cair com uma facilidade que desmentia as conexões soviéticas. A Jacobo Árbenz foi-lhe permitido partir para o exílio no México mas, derradeira humilhação, foi-lhe exigida uma revista metódica na alfândega. Até ao fim, mesmo fotografado de cuecas, Árbenz mostrou ser o perfeito aristocrata…
¹ Essa perspectiva no Século XX é exclusivamente de esquerda, onde a referência obrigatória é Fidel Castro, mas no Século XIX, como se vê pelo caso da intervenção do Imperador Napoleão III no México (1862-67), mostra como aquela perspectiva ideológica era abrangente.
² Tratava-se de uma verdadeira Reforma Agrária, envolvendo a expropriação de parte das terras dos latifundiários para que elas fossem repartidas e redistribuídas entre os camponeses pobres. Não confundir com a colectivização das terras ocupadas e/ou expropriadas, processo a que os comunistas portugueses em 1975 deram o mesmo nome.

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