04 dezembro 2008

A CAMPANHA DE GALÍPOLI

Se há campanha da Primeira Guerra Mundial onde se perceba bem o absurdo táctico para onde o pensamento militar da época podia conduzir os exércitos, o melhor exemplo é a campanha de Galípoli, que se desenrolou de Abril de 1915 a Janeiro de 1916. Todavia, a campanha faria todo o sentido do ponto de vista estratégico, como se comprova pelo mapa acima: os Aliados ocidentais (a azul) estavam separados do Aliado oriental russo, e o rasgo estratégico consistia em romper pelo Mar de Mármara (no canto inferior direito do mapa acima) e tomar Constantinopla aos turcos, aliados dos alemães.
Os defensores da Campanha (onde se contava Winston Churchill) apontavam-lhe várias vantagens: estabelecer-se-iam melhores comunicações com os russos e, ao conquistar-lhes a capital, pôr-se-iam os turcos fora de combate. Brilhante na concepção estratégica, a Campanha veio a revelar-se um fiasco em tudo o resto. Desde a confidencialidade: a cotação do trigo chegou a baixar na Bolsa de Chicago, tão bem informados estavam os seus operadores, ao mesmo tempo que se mostravam crentes no sucesso da Campanha, que reactivaria naturalmente as tradicionais exportações do trigo ucraniano pelo Mar Negro…
Numa época em que a palavra logística ainda era desconhecida, os elementos do corpo expedicionário descobriam às suas próprias custas a sua importância: a maior parte do material pesado que seria crucial empregar logo após o desembarque estava arrumado no fundo dos porões e os navios tiveram que voltar para trás e o desembarque atrasado por causa disso… Completamente perdido o efeito de surpresa, os objectivos das forças desembarcadas para o primeiro dia (acima, assinalados a vermelho tracejado) no ponto de desembarque principal não passavam de uma quimera. A realidade foi o risco vermelho contínuo...
De facto, raras vezes um mapa clássico, por lhe faltar o relevo, terá falhado tanto em retratar como era penosa a verdadeira situação dos desembarcados. A gravura acima* torna-a muito mais explícita, onde se vêem os terrenos anexos a uma enseada (que foi baptizada de Enseada ANZAC**) que estão polvilhados de tendas de campanha, enquanto ao longe se vê uma linha de alturas que estava na posse do exército turco. O navio de que se vê uma extremidade no lado direito da gravura é um navio cargueiro antigo que fora ali afundado propositadamente para servir de quebra-mar aos desembarques de homens e material.
Falhado o efeito surpresa e com os 70.000 homens da expedição encalhados junto às praias, todo o projecto estrategicamente brilhante se transformou num pesadelo. Sanitário, em primeiro lugar, com o número de baixas por doença (a disenteria e a febre tifóide) a ultrapassarem em proporções múltiplas as baixas registadas em combate; logístico a seguir, com as tropas numa situação extrema de dependência, em que até a água de beber tinha que vir do exterior; militar, por fim, com as ofensivas de ruptura a terem de se desencadear na posição desvantajosa de atacar de baixo para cima, conforme se comprova pelo mapa acima (objectivos 1,2, e 3).
De facto, as posições ocupadas pelos invasores eram tão anacrónicas que os tradicionais dispositivos em trincheira da Primeira Guerra Mundial tiveram que sofrer neste caso algumas adaptações que se podem comprovar na fotografia acima. A verdade crua é que, perdido o efeito de surpresa, mandava o bom senso que se tivesse abdicado do projecto. Que não se tendo podido abdicar antecipadamente dele, pela constatação da realidade, se tivesse procedido à evacuação das tropas com a maior brevidade possível. Também não foi assim. A Campanha continuou por mais oito meses e mesmo a decisão da evacuação foi controversa***.
Os resultados da Campanha foram um enorme reforço na auto-estima dos turcos (cartaz da direita) e as vicissitudes sofridas nela um enorme contributo para a formação de uma consciência australiana autónoma da da metrópole britânica (cartaz da esquerda). O dia 25 de Abril, que foi a data do desembarque, é um dia feriado na Austrália. Há um filme australiano de 1981, intitulado precisamente Galípoli, que contêm uma das cenas finais mais pungentes que conheço, que se desenrola precisamente antes de mais uma daquelas inúmeras ofensivas em direcção à crista da montanha, dominada pelas omnipresentes metralhadoras turcas…
* Esta gravura, como as posteriores deste poste, foram retiradas de Great Battles of World War I. As duas anteriores foram retiradas do The Viking Atlas of World War I.
** Acrónimo de Australian and New Zealand Army Corps (Corpo de Exército Australiano e Neozelandês).
*** A decisão do novo Comandante (Sir Charles Monro assumiu o cargo em Outubro de 1915) foi assim comentada por Winston Churchill, parafraseando César: Ele chegou, viu e capitulou. Assim se comprova que grandes figuras históricas também dizem grandes frases históricas que são grandes disparates históricos.

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