05 agosto 2008

SOBRE A SEIVA DE CERTAS ÁRVORES

Lembro-me como, nos momentos mais altos das dissidências do PCP, quando Álvaro Cunhal era questionado frequentemente pela comunicação social sobre esse assunto, num assomo metafórico nada frequente nele, que eu classificaria quase mesmo de maoista, recorreu à imagem de comparar os que então abandonavam o partido a folhas secas enquanto convidava os jornalistas a concentrarem-se nas outras folhas daquela grande árvore que era o Partido Comunista Português… e dá para imaginar o desenvolvimento e o resto da resposta…
Esta classificação vem a propósito do destaque que quero fazer a apreciação de uma dessas folhas secas sobre Alexander Soljenitsin, que foi publicada no Público por ocasião do falecimento recente do escritor russo. Numa expressão que parece tipicamente recuperada dos manuais do partido, Carlos Brito recusou conceder uma avaliação positiva pessoal ao galardoado com o Prémio Nobel da Literatura de 1970. Nisto concordo absolutamente: mesmo laureado com um Nobel, é sempre um bom princípio fazer uma distinção entre o escritor e a pessoa…
E, no geral, também concordo com Carlos Brito: apesar do carácter de denúncia dos crimes do regime soviético feito pelos seus livros, Soljenitsin era um péssimo exemplar para ser empregue como peão norte-americano nas disputas ideológicas da Guerra-Fria. Tudo o que mostrou depois de estar em liberdade no Ocidente acabou por dar-nos uma imagem de um russo profundo, retrógrado, verdadeiro apreciador da autocracia, que acabou discretamente esquecido pela máquina de propaganda ocidental que preferia dissidentes mais conformes.
Entre outras coisas, Soljenitsin não se manifestava contra o imperialismo russo, apenas o contrariava que lhe chamassem soviético. E nesta nova Rússia o velho escritor tornou-se pela primeira vez em excelente activo de propaganda (acima). Gostaria de saber que opinião terão os outros, as folhas verdes, mas, da grande árvore de Cunhal e dos seus discípulos, das folhas verdes que ele lá terá deixado, por estes tempos de estio e sobre esse assunto Soljenitsin, até agora apenas se escuta um silêncio que até deixa ouvir o cantar das cigarras

Óbitos podem ser ocasiões para homenagens e reflexões. Creio que neste caso do de Soljenitsin também pode ser um bom pretexto para uma reflexão sobre tudo o que aconteceu no passado no mundo socialista, e será muito mais do que ironia, ou poderá ser apenas a questão mais elementar, perguntar afinal, ainda socorrendo-nos da metáfora de Cunhal, qual daqueles dois lados serão os secos e qual serão os viçosos?

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