05 maio 2008

O SÍTIO DE ONDE SE VÊ O “AMANHÔ

Ao escrever A Volta ao Mundo em 80 Dias, Júlio Verne guardou a maior surpresa da aventura para o fim. É que Philleas Fogg, o herói, regressa a Londres depois da sua jornada e convencido que havia perdido por umas escassas 24 horas a sua aposta de dar a volta ao Mundo em 80 dias, mas estava enganado: ele havia ganho um dia suplementar durante o percurso, o que ainda lhe permitiu vir a ganhar a aposta. O fenómeno do ganho daquele dia suplementar por parte dos viajantes é engraçado mas as explicações científicas que se costumam dar costumam ser normalmente bastante confusas.
Para usar a que considero melhor, é preciso imaginar que a Terra pára de girar sobre si mesma. No sítio da terra onde o Sol estiver na vertical e for meio-dia, se alguém se puser a caminho do Oriente, há-de ver o Sol a descer gradualmente, como se se fizesse tarde, até se pôr no horizonte (recorde-se que, para este exercício, a Terra parou o movimento de rotação, o Sol está parado no seu movimento aparente). Continuando a caminhar continuamente para Oriente, depois de atravessar a noite do lado oposto ao sítio de onde partiu, o Sol torna depois a nascer para esse caminhante até regressar ao meio-dia.
Nessa altura o viajante regressou ao seu ponto de partida. Mas, apesar do Sol estar parado, apenas por causa da viagem à volta ao Mundo que entretanto deu, o viajante tem a impressão que se passou mais um dia do que os seus vizinhos. E, mesmo com a Terra a girar normalmente, o viajante teria sempre a sensação de que se tinha passado mais um dia, desde que tivesse partido para Oriente (como aconteceu com Philleas Fogg). Se tivesse partido em direcção a Ocidente, anulando o percurso aparente do Sol, o viajante ficaria com a sensação precisamente oposta ao regressar à origem: a de que se tinha passado menos um dia.
Para resolver este problema, descoberto originalmente pelos marinheiros de Fernão de Magalhães, criou-se na região menos povoada do planeta (o Oceano Pacífico), um meridiano seguindo as coordenadas dos 180º mas com um formato um pouco irregular (acima) para se poder ajustar às fronteiras políticas, onde se torna obrigatório mudar de data, adiantando ou recuando um dia, conforme o sentido em que se a atravessa. Simplificadamente, fique-se a saber que cada dia de calendário começa naquelas paragens, começando pela Nova Zelândia e passando depois para a Austrália, Japão, Coreia, China, etc.
É por isso que um mesmo acontecimento naquela região, como o ataque japonês a Pearl Harbour, pode ter tido lugar em duas datas consecutivas: a 7 e 8 de Dezembro de 1941. Dia 7 na perspectiva dos atacados, a data local das Ilhas Havai, e dia 8 na dos atacantes, utilizando a data em vigor no Japão. Mas é a Norte, quase junto aos pólos, no sítio onde as duas grandes massas continentais (a Ásia e a América do Norte) mais se aproximam, no chamado Estreito de Bering, que as questões associadas à Linha Internacional de Mudança de Data se podem tornar ainda mais surpreendentes.
Naquele Estreito (com menos de 100 km de extensão) existem duas ilhas – as Ilhas Diomede, a grande e a pequena (acima) – que, apesar de separadas por um canal com menos de 4 km de largura (abaixo), pertencem a países diferentes (a maior, à direita, é russa, a menor norte-americana), a fusos horários diferentes e, porque a Linha Internacional de Mudança de Data passa através desse canal, vivem até em dias diferentes. No auge da Guerra-Fria, por ali passava uma das raras fronteiras directas entre as duas superpotências. E, pelo menos naquela época e ali, o socialismo era o amanhã e o capitalismo o ontem
Mas porque aqueles eram amanhãs que nunca cantaram e eram apenas para se verem, talvez precisamente por essa sobriedade e rigor científicos e ainda mais por falta daquele lirismo dialéctico, são amanhãs que lá continuam para serem vistos, mesmo depois da Perestroika de Gorbachev…

2 comentários:

  1. o "lirismo dialético" como o "posto" nesse texto prova quão fértil e aberto é o campo da transformação do mundo do nosso ponto de vista, o de intelectuais militantes para além das basófias teoréticas pós-modernosas.

    saudações revolucionárias cá d'outro lado do estreito atLântico,

    gt

    ResponderEliminar
  2. Embora atrasado, retribuo-lhe as saudações, Gilberto.

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.