12 maio 2008

A SUÍÇA DO MÉDIO ORIENTE

Contou-me quem sabe que, numa reunião alargada com uma vintena de suíços mesmo que eles sejam todos originários dos cantões de língua alemã (que são a maioria: cerca de 75% da população), a primeira meia hora da reunião (e Deus sabe como eles são pontuais…) pode ser dedicada à escolha da versão cantonal oral do alemão suíço com que decorrerão os trabalhos. O debate não está aberto a estrangeiros (é o caso de quem me contou esta história, alemão de Hanôver, que preferiria uma versão oral das menos castiças…) mas ao fim daqueles 30 minutos a decisão é tomada e a reunião começa, de facto, com uma fluidez que nada tem a ver com as nossas tradicionais dispersões lusitanas.
O Líbano é frequentemente comparado com a Suíça e há alguns aspectos nos dois países que se assemelham, a começar pela geografia física (acima) que facilita a formação de agrupamentos cantonais distintos (abaixo), só que neste caso de carácter religioso. Mas as semelhanças por aqui se ficam. A hipotética vintena de libaneses da reunião do parágrafo acima não teria quaisquer problemas na escolha da língua de trabalho (árabe), mas a escolha sobre se se proferiria e quem proferiria uma oração antes da reunião teria sido o pretexto para os que queriam conduzir a reunião desencadeassem um debate que se tornaria mais importante do que os problemas que se procuravam resolver com aquela reunião.
Parece ser genético e fazer parte da gramática da disputa política local. É verdade que a localização geográfica do Líbano não ajuda à pacificação, entalado como está entre Israel e a Síria (abaixo), mas esse argumento aplicava-se também à Suíça na época das grandes rivalidades franco-alemãs e ela permaneceu neutral durante as duas Guerras Mundiais… Por outro lado, definido pelas comunidades religiosas, o quadro político libanês é mais complexo e confuso do que o suíço: até 1997, enquanto foi obrigatório mencionar a confissão religiosa do portador do bilhete de identidade, havia 17 comunidades distintas que eram legalmente reconhecidas… – 11 cristãs, 2 muçulmanas (xiita e sunita), druza, judia, ismaelita e alauíta.
É esta complexidade que torna mais fácil escreverem-se disparates quando se fala do Líbano, como o da coluna de opinião de hoje do Diário de Notícias, assinada por Manuel Queiroz, que se refere (final do parágrafo intermédio), aos cristãos de Nabih Berri, que é o presidente do Parlamento”. Ora, uma das primeiras coisas que se aprende quando se estuda o Líbano político são as cláusulas do Pacto Nacional de 1943 que repartiu os cargos do Estado libanês pelas confissões religiosas: um Presidente cristão maronita, um Primeiro-Ministro muçulmano sunita e um presidente do Parlamento, muçulmano xiita… Nabih Berri (abaixo), pelo cargo que ocupa, é obviamente xiita*. Manuel Queiroz até se podia ter informado
Já aqui na blogosfera, encontra-se uma outra abordagem para analisar estes recentes acontecimentos no Líbano, mais ideológica, mas mais defensiva, passando por alto o detalhe dos acontecimentos, e por isso menos propensa a cair nas armadilhas daqueles erros factuais. Decalcando os interesses israelitas, podem dar mais destaque à própria cobertura mediática do conflito actual, que é menor e menos enviesada do que quando Israel interveio no Líbano, ou então remetem para a incapacidade do governo libanês e da UNIFIL para derrotar o Hezbollah xiita. Mas, como já aqui escrevi e como se pode ler nos documentos originais que a mandatam, o objectivo da UNIFIL não é substituir o exército israelita…
Finalmente, lendo a substância das notícias do que aconteceu recentemente no Líbano, fica-se a saber que os recentes conflitos tiveram lugar tanto nos arredores de Beirute Ocidental** entre as milícias do Hezbollah xiita e do PSP*** druzo, como também nos arredores de Tripoli (cidade do Norte do Líbano) mas aqui entre milícias sunitas rivais, apoiantes e opositoras do governo. A vantagem parece ter pertencido à facção que aglutina as diversas forças que estão na oposição. Não é de excluir que se possa esperar uma nova invasão de tropas sírias. Só aí será apropriado fazer-se uma comparação com a cobertura informativa que foi dada aos acontecimentos do Verão de 2006. Mas até lá, a comparação parece-me excessiva…

* Embora xiita, Berri não pertence ao Hezbollah, mas sim a um partido concorrente, o Amal.
** É em Beirute Ocidental que se localizam os bairros de maioria muçulmana. Beirute Oriental é predominantemente cristã.
*** Partido Socialista Progressista. É o único caso que me lembro de um partido nitidamente étnico/confessional que é membro da Internacional Socialista. Já ouvi o seu dirigente, Walid Jumblatt, um senhor feudal típico, a receber grandes elogios de son ami Mário Soares…

2 comentários:

  1. Além do resto... muito didáctico!

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  2. Aqui está uma Suiça à medida de Israel e não me refiro aos Bancos.

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