08 fevereiro 2008

A BANDEIRA DO COMPROMISSO

Entre as duas centenas de bandeiras nacionais que existem no Mundo, a de Chipre prima pela sobriedade, que lhe confere um carácter único. É totalmente branca, onde aparecem os contornos geográficos da ilha em cor de cobre sobre dois ramos de oliveira (de gregos e turcos) que são, na realidade, os originais símbolos de paz – a pomba branca que o transporta no bico e a que costumamos associar a essa imagem, é apenas a carregadora.
À beira da independência do Reino Unido (Agosto de 1960), os representantes das duas principais comunidades da ilha, grega (79% da população) e turca (18%), não se conseguiam entender à mesa das negociações, nem nas cores nem nos símbolos, que a futura bandeira nacional viria a ter e só aquela solução provisória (!) foi aceite pelas partes, enquanto se aguardava que a futura Assembleia resolvesse a questão. Até hoje.

Chipre é uma ilha do Mediterrâneo oriental, com uma área de 9.251 Km.² (um pouco mais extensa que um distrito português médio), mas com regiões acidentadas – o seu ponto mais alto, o Monte Olimpo atinge os 1.951 metros de altitude, somente 40 metros menos do que a Torre da Serra da Estrela. Como seria de esperar naquela localização, a ilha tem uma história documentada antiquíssima, que começa por volta de 2.200 a.C.

Os acontecimentos que mais interessam para a explicação da sua situação actual, foi a colonização grega, que terá começado no II milénio a.C. que fez a ilha tornar-se parte do mundo cultural grego, a conquista da ilha pelo Império Otomano em 1571 que, pela colonização e conversão de alguns habitantes locais, tornou parte da população muçulmana e a posterior cedência da ilha ao Reino Unido pela Turquia em 1878.
Chipre tornou-se assim num caso anómalo de uma colónia povoada maioritariamente por europeus de cultura ocidental (gregos) a quem não foram reconhecidos os direitos à auto-determinação, que o mesmo Reino Unido tanto gostava de invocar nas questões de politica externa no próprio continente… A expressão dessa auto-determinação entre a população grega maioritária parecia ser inequívoca: a união com a Grécia (a Enosis).

A esses desejos opunham-se o Reino Unido, a Turquia e a comunidade cipriota turca. No período entre guerras (1918-39), Chipre foi uma reprodução em escala muito mais pequena daquilo que se passava na Índia, com uma aliança tácita privilegiada entre o poder colonial britânico e a minoria muçulmana. Para mais, quando foi própria Igreja Ortodoxa local que se veio a tornar a organização impulsionadora da Enosis.

Mas no período depois da Segunda Guerra Mundial a posição britânica tornou-se insustentável. Como líder nacionalista grego apareceu o Arcebispo Makarios III (abaixo, uma espécie de antepassado de Ximenes Belo...), e a comunidade grega entrou numa fase de terrorismo urbano para forçar o fim do regime colonial. O problema era a recusa total dos turcos em aceitar a Enosis, ameaçando invadir a ilha em caso disso acontecer.
As contingências das realidades estratégicas impuseram-se sobre as organizações nacionalistas gregas e turcas, embora as facções moderadas de ambos os lados tivessem grande dificuldade em impor-se sobre as radicais, que desejavam, por um lado, a Enosis, e por outro, a divisão da ilha. É sob esse ambiente tenso, que apareceu aquela bandeira provisória. Entre os símbolos da nova nação, pior seria arranjar a letra para um hino…

Quanto ao Presidente da nova República de Chipre, ele veio a ser o mesmo Arcebispo Makarios III, regressado do exílio para onde os britânicos o haviam mandado, embora a Constituição previsse um Vice-Presidente oriundo da comunidade turca, além de uma distribuição rigorosa de 70% gregos e 30% turcos em todos os escalões da administração pública. As coisas correram menos-mal durante os três primeiros anos.

Em finais de 1963, Makarios propôs modificar a Constituição, a comunidade cipriota-turca reagiu com o apoio da Turquia, começou um embrião de Guerra Civil e em Março de 1964, para separar as forças, os capacetes azuis da ONU instalaram-se em Chipre para nunca mais de lá saírem. Nos dez anos seguintes coexistiram duas administrações e começaram a surgir propostas para existisse uma região turca, no Norte da ilha.
Como se percebe pelo mapa acima, datado de 1968, a implementação dessa proposta de dividir a ilha em duas comunidades iria obrigar a uma enorme deslocação de populações à escala insular: as comunidades tinham uma distribuição quase uniforme pelas suas várias regiões e só a proximidade da Turquia, como protectora, parecia justificar a opção pelo norte da ilha para a localização do estado turco de uma hipotética federação.

A situação do Arcebispo Makarios não deixa de ser um pouco trágica. Eleito e reeleito, ele encontra-se no meio de um conflito protagonizado por dois membros da NATO (Grécia e Turquia), ameaçado de invasão pelos segundos, ameaçado de derrube pelos primeiros (que continuam a apoiar os extremistas gregos que pretendiam a Enosis), e decidiu-se a ir buscar apoios ao outro lado da Guerra Fria: Egipto e União Soviética.

Foi uma movimentação lógica, mas que acabou por se revelar contraproducente, ao despertar as desconfianças norte-americanas, quanto ao alinhamento e evolução futura de um Chipre neutralizado, para mais quando o partido comunista cipriota grego (AKEL) conseguia captar cerca de 30 a 40% do eleitorado nas eleições. Em Julho de 1974, os extremistas pró-Enosis deram um Golpe de Estado, com o apoio dos gregos.
À deposição de Makarios III seguiu-se, quatro dias depois, a invasão turca, cujas tropas vieram a ocupar o Norte de Chipre (37,2% da ilha), dividindo a ilha em duas parcelas que ainda hoje estão separadas (acima), provocando a deslocação de 180.000 cipriotas gregos das áreas do Norte para Sul e de 11.000 cipriotas turcos no sentido inverso. Makarios regressou e foi reempossado em Dezembro de 1974, mas o mal estava feito.

Em vez da Enosis desejada pelos gregos e pelos cipriotas pró-gregos, fora a Turquia que havia conseguido que se concretizasse o seu projecto, o Taksim: a divisão da ilha em dois territórios, sendo um deles destinado à comunidade cipriota turca. O que lhe ficava a faltar era o reconhecimento internacional do facto consumado, e foi sobretudo com esse fito que os seus diplomatas se sentaram à mesa das negociações

O declaração unilateral da independência de uma República Turca do Norte de Chipre em 1983, que veio a ser um fiasco de Relações Internacionais, porque veio a ser apenas reconhecida pela própria Turquia, não alterou o impasse da situação cipriota, com o lado grego, dispondo da legitimidade que a comunidade internacional atribui ao governo instalado em Nicósia, a recusar-se a ceder qualquer parcela da mesma ao outro lado da ilha.
Entre as duas entidades, evitando o seu contacto directo, como outrora a No Man´s Land entre as trincheiras da Primeira Guerra, existe uma região tampão a toda a extensão da ilha, com uma profundidade variável, desabitada, que é conhecida por Linha Verde, e que já se tornou numa espécie de curiosidade ecológica depois de quase 34 anos sem a presença humana, onde o arvoredo frondoso (acima…) desponta do meio do alcatrão…

Apesar de gregos e cipriotas gregos já terem concluído (e já se terem recriminado) aonde o disparate de terem forçado a Enosis em 1974 acabou por os conduzir, as relações entre os dois países, tirando alguns percalços, são do mais íntimo que existe. Tipicamente e em jeito de anedota, em qualquer Eurofestival a representação cipriota atribui a pontuação máxima à canção grega e os gregos retribuem em conformidade...

A Grécia foi também uma grande madrinha da admissão de Chipre à União Europeia. E a entrada de Chipre na UE (em Maio de 2004) foi percebida pela ONU como uma ocasião única para apostar na reunificação da ilha, servindo essa adesão como um enorme incentivo para que a parte turca votasse favoravelmente um Plano gizado pelo então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, e que veio a ser submetido a referendo nos dois lados.
O Plano veio a ser aprovado por 65% dos cipriotas turcos, mas os cipriotas gregos, sentindo-se agora numa outra posição de força negocial, rejeitaram-no por 76% dos votos e, em consequência, foi só o Estado Greco-Cipriota a formalizar a adesão à União Europeia. Afinal parece que a bandeira cipriota que havia resultado de um compromisso, deve ter um grande valor simbólico, numa terra onde os compromissos são muito raros…

4 comentários:

  1. Excelente lição de História.
    Apesar de todas estas vicissitudes e das dificuldades que se irão manter com vista a reunificação, Chipre conseguiu entrar na UE já à frente de Portugal e neste momento está apenas a 10% da média dos 27 no que diz respeito ao PIB per capita(contra os nossos 25%) e tem um salário mínimo de 610 Euros.

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  2. Agradeço os parabéns pelos bth.
    bfs

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  3. Eis um texto sóbrio, repleto de informação e muito bem escrito. Parbéns.
    Um bom fim de semana.

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