18 janeiro 2008

A EUROPA DA SEGURANÇA E DEFESA

Ontem, o Público publicou um importante artigo de opinião, da autoria do General Loureiro dos Santos (abaixo), sobre as inovações na política de defesa contidas neste novo Tratado de Lisboa. Creio que a síntese da sua opinião não perderá rigor quando dissermos que o articulista considera que, no essencial, não houve mudança alguma… E que, na ausência de mudanças, nomeadamente sem aumento dos recursos afectos à área, a Europa não deixará de depender militarmente dos Estados Unidos, da forma acentuada em que ela actualmente se encontra.

O que falta à União em meios, parece sobrar-lhe em imaginação semântica, com terminologias como cooperações reforçadas, ou a cooperação estruturada permanente entre alguns estados membros que, se vierem a funcionar com eficácia e como muito bem assinala o articulista, fazem correr o risco de se ressuscitarem aquelas Grandes ou Pequenas Ententes, as alianças europeias preferenciais entre estados europeus de grande, e depois, no período entre-guerras (1919-39), de média dimensão, que, sempre foram características da geopolítica europeia.

Vale a pena ler o artigo na totalidade (encontra-se disponível no final do poste…), sobretudo pelo destaque que dá a um dos aspectos da unidade europeia (defesa) a que aos protagonistas políticos não lhes costuma interessar dar nenhum relevo. Simbolicamente, a adida de Bruxelas (ou será de Berlim?...) encarregada para a comunicação social portuguesa, Teresa de Sousa, tem todo o aspecto de não saber por que ponta se deve pegar numa arma… Mas isso é apenas o aspecto carnavalesco do problema; a preocupação é se quem está por detrás dela julga que, pela omissão, esse problema se resolverá…

Recorrendo à história, houve grandes momentos de grandes vitórias de coligações de exércitos europeus no passado: nos Campos Cataláunicos (451) contra os hunos, em Poitiers (732), contra os muçulmanos, em Legnica* (1241), contra os mongóis, em Lepanto (1571 - abaixo) e em Viena (1683), contra os turcos. Contudo, todos esses foram grandes momentos de batalhas defensivas e de coligações circunstanciais perante aquilo que era percebido na altura como enormes ameaças exteriores ao equilíbrio continental. Exércitos multinacionais e multifuncionais (defendem e também atacam!), com uma direcção política coordenada, são outra coisa…

Alguns dos exemplos históricos mais recentes desses exércitos estruturalmente multinacionais são mesmo politicamente muito desconfortáveis no quadro político actual: o Grande Exército napoleónico que invadiu a Rússia (1812), ou as Waffen SS nazis que se passearam pela Europa (1939-45). É preciso recuar muito mais, até às cruzadas e às Ordens Militares, ou mesmo ao tempo dos imperadores romanos, para que apareçam exemplos de organizações multinacionais do ramo da segurança e defesa que sejam politicamente aceitáveis para o quadro político actual.

É do senso comum reconhecer que a afirmação dos interesses diplomáticos de um grande actor da cena internacional tem que assentar num balanceamento entre o incentivo e a coacção. É o próprio General Loureiro dos Santos a destacar, no seu artigo, os méritos dos esforços do representante pela política externa da União** em vários pontos quentes do Mundo. Eu poderia reforçar ainda mais essa imagem, muito especialmente no que diz respeito à componente incentivo, exemplificando com o facto de que a União Europeia tem sido a maior contribuidora para os orçamentos da Palestina…

Felizmente o elogiado, Javier Solana (acima), é uma pessoa optimista e bem disposta, porque a componente da coacção à disposição dos interesses que ele pretende defender é muito mais folclórica do que substantiva. Como muito bem assinala o articulista, essa segunda componente, e os destacamentos militares que lhe dariam forma, estarão mais concebidos para iludir as opiniões públicas domésticas dos próprios países europeus que os geram, do que os profissionais militares (como é o próprio general) das entidades políticas que seria suposto coagir…

Mas engana-se redondamente quem pensar que se consegue projectar poder no exterior recorrendo exclusivamente à demonstração ostensiva da prosperidade económica. Vale a pena responder a isso, indo ao passado e comparando a dimensão e a sumptuosidade dos juncos do Almirante Zheng He, que visitou a África Oriental e a Índia no primeiro terço do Século XV, e os navios de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral que lá chegaram no final do Século, muito mais pequenos (abaixo, em escuro) mas guarnecidos de canhões e de tripulações decididas a usá-los…

Creio que em toda esta história recente do aspecto formal como se aprovará o Tratado de Lisboa (referendado ou não), o problema nem sequer se restringe apenas às acusações de que a construção da entidade europeia está a ser feita por um núcleo aristocrático cerrado. Há sobretudo o problema adicional da forma sinusoidal como essa entidade europeia parece estar a ser edificada por esses mesmos responsáveis, contornando, como nestes tópicos de segurança e defesa, algumas verdadeiras dificuldades que, apesar de muito complicadas, não deveriam ficar pendentes para o futuro.

Entre os grandes autores mundiais de estratégia, há autores reputados como Sun-Tzu ou Basil Liddell Hart, que recomendam que se privilegie a abordagem indirecta, contornando os obstáculos, derrotando os inimigos evitando o confronto directo com eles. Mas são os mesmos autores, além de outros, que também recomendam que qualquer desses obstáculos a contornar seja primeiro avaliado pela sua relevância (táctica ou estratégica), antes de assim proceder. A recusa do referendo é um erro estratégico de todos os líderes europeus, escreve o General Loureiro dos Santos. Dá para pensar…

* Vale a pena fazer a reserva que Legnica esteve muito longe de ter sido uma vitória táctica dos europeus…
** Actualmente, é o espanhol Javier Solana. O cargo virá a ter a designação de Alto-Representante da União para os Negócios Estrangeiros se o Tratado de Lisboa vier a ser aprovado.

ADENDA: Mão amiga fez-me chegar o artigo em referência:

TRATADO DE LISBOA: SEMENTES DE DIVISÃO NA POLÍTICA DE DEFESA


O tratado de Lisboa não introduz alterações significativas no capítulo da política de defesa que constava do “tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”, cuja ratificação foi recusada em referendo por dois países da União.


Nem vem muscular a UE com a força militar que lhe falta. Não pela inexistência de tratados e das respectivas orientações, nem de organismos de cúpula e de estado-maior que as estudem e aconselhem, mas por ausência de vontade dos responsáveis políticos europeus.

Enquanto não aumentarem substancialmente os investimentos financeiros na defesa, equipando as forças militares dos respectivos países com equipamentos modernos, aproximando os respectivos orçamentos dos 3% do PIB (em Portugal, ronda os 1,2% e não é muito diferente na Alemanha), nestas circunstâncias, a Europa não deixará de depender militarmente dos Estados Unidos.

Assim como não desempenhará papel relevante numa crise internacional, mesmo que ela seja de pequeno vulto, enquanto continuar a tibieza que muitos dirigentes da União têm revelado, ao recusarem enviar forças para teatros de operações onde se encontram em jogo interesses essenciais europeus, ao retirarem os contingentes empenhados ou ao limitarem-se a destacar forças cujo emprego fica condicionado às áreas ou acções menos perigosas, tudo por medo de perderem a sua popularidade entre os concidadãos e serem substituídos no poder que exercem ou de não o alcançarem em futuros actos eleitorais.

O Alto Representante da União desdobra-se em reuniões e conversações nos mais diversos locais do mundo e há unidades militares europeias (de reduzida dimensão), bem como especialistas militares e civis, em muitas regiões conturbadas do globo, onde mostram inteligência de actuação, agem com habilidade e muita utilidade na aproximação pacífica de actores em conflito, contribuem para a estabilização de áreas onde os confrontos podem irromper a qualquer momento. Mas quando a violência explode, as baixas se multiplicam, há necessidade de empregar forças mais robustas em operações de alto grau de risco onde poderão ocorrer numerosas baixas, que exigem grande capacidade de mobilidade estratégica, elevado poder de fogo, comunicações garantidas, fiáveis e protegidas, informações precisas e em tempo real, nestas condições, muitos países europeus, cautelosamente (?) batem em retirada, outros reduzem os respectivos contingentes, outros ainda invocam argumentos políticos, às vezes bem rebuscados, que justifiquem a sua inacção. Paradoxalmente, apelam para os EUA, sem cuja participação nada se resolve. Depois, costumam queixar-se de que não são tidos nem achados pelos americanos na tomada de decisões nem na recolha das vantagens obtidas…

As capacidades de defesa da União dependem basicamente do grau de investimento dos governos nas suas forças militares e da vontade política de as empregar, mesmo à custa do sacrifício de vidas e do correspondente risco de baixa de popularidade dos decisores. Mas, a menos que possa ser ignorado, não é indiferente o normativo que regula as grandes linhas que obrigam os países europeus a orientar a sua política de defesa, O Tratado de Lisboa, com ligeiras modificações relativamente ao anterior texto constitucional, mantém o alargamento do mecanismo das “cooperações reforçadas” ao domínio da segurança e defesa e estabelece uma “cooperação estruturada permanente” a constituir pelos países que se comprometam, segundo os termos de um protocolo já acordado, a desenvolver e assegurar determinadas capacidades militares para serem colocadas à disposição da UE, tendo em vista a realização de acções de defesa comum. Ora, o modo como são constituídas a cooperação estruturada permanente e outras cooperações reforçadas que se venham a formar, bem como a forma como se processa o seu funcionamento interno depois de materializadas, contêm um potencial de fractura da União verdadeiramente perigoso.

Este potencial de fractura resulta do risco de poderem surgir conflitos entre os países membros, num domínio tão sensível como o das capacidades militares, que poderão suscitar dinâmicas de tensão, capazes de provocar atritos entre grupos de países, próximos do “conflito civil”, decalcando tempos passados, embora (esperamos) num patamar de intensidade menos agudo do que aquele que ocorreu no período que ficou conhecido como das “guerras civis europeias”.

De acordo com o que ficou estabelecido, a constituição de uma cooperação reforçada e da cooperação estruturada permanente será decidida pelo Conselho, em votação por maioria relativa. Acções posteriores à constituição destas cooperações para decidir a eventual expulsão de um dos seus membros assim como a admissão de novos membros, embora também sejam votadas em Conselho, a que podem assistir os representantes de todos os países da União, por maioria relativa, apenas participam na votação os países que já a integram. Decisões concretas ligadas aos meios e respectivo grau de sustentação e operacionalidade serão igualmente votadas apenas pelos estados-membros que formam a cooperação, agora por unanimidade. Seria bem mais prudente que, em todas as questões, votasse a totalidade dos países membros (e não só os que fazem parte da cooperação), preferencialmente por unanimidade (e não por maioria relativa).

Além de outras questões de soberania fora da área da Defesa que o aconselham, também esta norma do Tratado de Lisboa, de que a presidência portuguesa da União deu conta e para os riscos da qual chamou a atenção, recomenda o recurso a um referendo para a sua ratificação, em vez da ratificação em sede parlamentar. Independentemente do governo estar ou não a faltar ao cumprimento de uma promessa (o que não é nada indiferente, sublinhe-se), a vantagem do referendo seria a discussão pública do seu conteúdo e o comprometimento dos cidadãos com o que foi aceite pelos seus legítimos representantes.

Sem uma consulta popular directa, ficarão reforçados todos os riscos decorrentes da concretização de certas passagens do texto, cuja execução possa afectar significativamente interesses essenciais de cada Estado-membro e atingir gravemente a vida dos respectivos cidadãos. Em situações de crise que venham a desencadear-se, os cidadãos, desconhecedores da razão de ser das determinações do Tratado, poderão contestar fortemente medidas decididas que agravem o seu bem-estar e/ou a sua segurança, podendo gerar-se ondas de agitação difíceis de apaziguar. Acusando os dirigentes nacionais de serem culpados das consequências negativas que os afectam, resultantes de um Tratado que teria sido negociado “nas suas costas” e à sua revelia. Até porque, frequentemente, os responsáveis políticos dos países costumam justificar as medidas negativas que decidem com as “costas largas” da União, como entidade distante que os não deixa praticar o bem.

A recusa do referendo é um erro estratégico de todos os líderes europeus. Esperemos que, no futuro, quando estiverem em causa interesses vitais de estados e de cidadãos, não resultem situações de crise grave que façam implodir a UE – esta nova e atípica entidade política – com tudo o que representa de progresso e estabilidade para os europeus e para o mundo.

A concretização da cooperação estruturada permanente poderá ainda conduzir à divisão dos estados-membros da União em dois tipos: 1) de primeira, aqueles que dela fazem parte e portanto satisfazem as capacidades militares exigidas no “Protocolo relativo à cooperação estruturada permanente”; 2) de segunda, os que não pertencem à cooperação. Os primeiros, com forças militares eficientes, ficam com maior peso na União, podendo ser tentados a prosseguir em conjunto um caminho decidido apenas por eles próprios. Os segundos, sem força militar relevante que coloquem ao serviço da União, correm o risco de serem vistos como de nível inferior e ficar menos influentes.

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