11 julho 2007

SIMON DU FLEUVE E OS PSEUDÓNIMOS

Simon du Fleuve é um herói da BD franco-belga, aparecido já na segunda metade da década de setenta, da imaginação do criador francês Claude Auclair (em baixo, 1943-1990), falecido prematuramente aos 47 anos. O universo das histórias de Simon du Fleuve é o de um futuro pós-apocalíptico, depois da nossa sociedade moderna se ter desmoronado e quando a Humanidade regressa para um grau de desenvolvimento equivalente ao medieval. Vivendo-se num dia a dia ideal feito de necessidades e actividades simples, aparecem focos de autoridade que são sempre descritos como retornos ao passado e como ameaças expansionistas à sociedade vigente.
Embora não enquadrado com as ideologias dominantes naquela época, as histórias de Simon du Fleuve contêm uma componente ideológica fortíssima onde para além do realce aos aspectos ecológicos (então novidade), se nota um anti-modernismo militante. Mas não deixam de ser interessantíssimas por causa disso. Para interesse deste poste, devo contar um episódio do terceiro álbum da série, Maílis (retratado mais acima), onde o herói acaba por encontrar uma antiga central nuclear, onde os antigos empregados, física e mentalmente degradados devido ao excesso de radiações, continuavam a manter os procedimentos de alimentação da central com material radioactivo.
Só que agora, tantos anos passados e esquecidas quais eram as intenções iniciais dos gestos de alimentação do reactor nuclear, os procedimentos haviam-se tornado num gigantesco ritual religioso patético onde até os equipamentos de protecção contra as radiações tinha apodrecido (a imagem acima é retirada de uma das páginas do álbum)… Para os mais curiosos, na continuação da história a central nuclear acaba por explodir numa gigantesca nuvem em forma de cogumelo – um acontecimento improvável na realidade, lembremo-nos, através do exemplo de Chernobyl, que o grande perigo das centrais nucleares sempre foi o da contaminação radioactiva – embora o nosso herói se escape.

Mudando de assunto, quase todos os que estudaram a Revolução Russa se lembram como o uso de pseudónimos era comum entre os revolucionários daquela época. Foi com eles que ficaram conhecidos na História, mas a verdade é que Lenine se chamava verdadeiramente (Vladimir Ilitch) Ulianov, que o nome verdadeiro de Estaline era o dificilmente soletravel (Iossif Vissarionovitch) Djugashvili e que Trostski respondia pelo nome de (Lev Davidovich) Bronstein. Mas talvez seja uma surpresa para aqueles que conhecem o nome de outros dirigentes bolcheviques descobrirem que a maioria deles são também pseudónimos.

Sem ser exaustivo, Lev Kamenev (o homem de pedra) chamava-se Rosenfeld e Vyacheslav Molotov (o martelo) Scriabine. Mais prosaicos, Ovsei-Gershon Aronovich Radomyslsky tornou-se em Grigory Zinoviev e Meir Henoch Mojszewicz Wallach-Finkelstein ficou conhecido para a História por Maxim Litvinov, dissipando ambos as suas ascendências judaicas por detrás de pseudónimos tipicamente russos. Ter um pseudónimo era, depois da Revolução, um símbolo de antiguidade e de empenho militante na luta contra o regime do czar. Que nem era exclusivo dos bolcheviques: os mencheviques Pavel Axelrod e Julius Martov chamavam-se Pinchas Borutsch e Yuli Zederbaum.
O que é importante compreender é que a adopção do pseudónimo se veio a tornar, para além dos aspectos óbvios da segurança de uma actividade clandestina, como um verdadeiro ritual simbólico de todos os partidos comunistas que tivessem que operar na clandestinidade, como se pode perceber, aliás, através da biografia que José Pacheco Pereira tem estado a escrever de Álvaro Cunhal, onde vai dando aos volumes os títulos do pseudónimo de Cunhal adoptou em cada época (Daniel, Duarte). Também acredito que o livro de Zita Seabra (que ainda não li) contenha várias referências a essa prática. Em contrapartida, dirigentes de grandes partidos comunistas em democracia, como Maurice Thorez em França, sempre foram conhecidos pelo próprio nome*.

Já aqui tive oportunidade de registar uns poucos comentários que, independentemente do nome pelo qual se assina o comentador ou comentadora, costumam ser de uma homogeneidade ideológica e que normalmente se pronunciam criticamente quando o conteúdo do poste não é particularmente simpático para os comunistas, como é o caso dos senhores que se assinam Fernando Teixeira, nesta caixa de comentários ou Alice Almeida, nesta outra. Noutros blogues houve quem tivesse encontrado comentários críticos idênticos mas assinados por nomes diferentes conforme o blogue… Dar-se-á o caso de haver jovens comunistas que deram em brincar aos pseudónimos na blogosfera?

É que os episódios mencionados criaram-me a dúvida se o comentário de Vítor Dias era mesmo do próprio... A continuação dos acontecimentos tiraram-me a dúvida mas, se a brincadeira aconteceu mesmo, quando nós vivemos há mais de 30 anos em democracia, creio que essa propensão para imitar os antecessores no emprego de pseudónimos numa outra conjuntura, democrática e totalmente distinta das do passado, só se pode justificar por uma questão de estilo, quase religiosa, como acontecia com os desgraçados descritos no episódio de cima da história de Simon du Fleuve, que alimentavam de combustível o reactor nuclear sem saberem bem porquê…

* Como aconteceu com Álvaro Cunhal depois de 1974.

2 comentários:

  1. Todas as religiões têm os seus ritos, mesmo quando se disfarçam de "partidos"!

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  2. Mas mesmo os ritos têm de ter a sua utilidade. De acordo com o Concílio Vaticano II, para que a missa passasse a ser acessível a uma audiência cada vez mais educada deixou de ser dita em latim...

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