04 junho 2007

QUEM NÃO QUIS COMPREENDER O DISCURSO EM QUE DE GAULLE DIZIA QUE OS COMPREENDIA

Um dos discursos mais famosos da longa carreira política do general de Gaulle foi pronunciado a 4 de Junho de 1958 (há precisamente 49 anos!), em Argel, perante uma enorme multidão que o fora aclamar, quando o impasse levantado pela Guerra da Argélia pusera em causa o próprio regime da metrópole francesa (a IVª República) e o seu próprio presidente (René Coty) havia apelado para que o mais ilustre dos franceses assumisse a chefia do governo.

De Gaulle reaparecia assim encarnando novamente o homem providencial e o principal problema que se lhe deparava era o delicadíssimo assunto da Guerra da Argélia. Só que, ao contrário do que acontecera aos microfones da BBC em Junho de 1940, desta vez ele tinha mesmo a atenção de todos os franceses no que diz respeito ao conteúdo dos discursos que proferia… E o que estava em jogo era definir um futuro viável para a Argélia.

Constitucionalmente, as regiões mais ricas e povoadas da Argélia faziam parte da França. No passado, essas regiões haviam sido destino de uma razoável corrente de imigração de europeus meridionais cujos descendentes vieram a adquirir a cidadania francesa. Havia-os de origem francesa genuína mas a maioria era sobretudo de origem espanhola, italiana, maltesa ou judaica, e essa comunidade de colonos com os anos adquiriu coesão social e vieram a ser designados como os pieds-noirs.

Eram eles que dominavam a vida económica e política da Argélia francesa e, como funcionavam em bloco, atingiam uma dimensão crítica (um pouco menos de um milhão) para lhes permitir fazer um lóbi fortíssimo em Paris. Porque, para eles, jogava-se a sobrevivência do seu estatuto: os pieds-noirs eram apenas cerca de 10% de população argelina e num regime verdadeiramente democrático, o peso eleitoral dos argelinos de confissão muçulmana prevaleceria.

Mas vale a pena notar como, e a história posterior da Argélia demonstrou-o, o grande bloco dos argelinos muçulmanos excluídos também estava eivado de potenciais fracturas internas (a rivalidade entre árabes e berberes, por exemplo), que a democracia eleitoral poderia expor, o que também não conviria nada à FLN (Frente de Libertação Nacional), que era a organização nacionalista que neles se apoiava para promover a luta armada contra o domínio francês.

Fora para a invenção que fosse uma quadratura do círculo que se apelara ao mais ilustre dos franceses. O ambiente de expectativa resultante da nomeação de de Gaulle está muito bem retratado no romance Os Pretorianos de Jean Lartéguy: todos esperavam (os militares também) com muito lirismo, a solução, que teria de ser uma solução nova, inédita, como se na política as regras já não tivessem sido inventadas, de há muito…

Foi extensa esta explicação, mas era importante para descrever os espíritos e enquadrar o ambiente que rodeava o discurso que de Gaulle proferiu em 4 de Junho de 1958 e que começava com uma famosa expressão Je vous ai compris (compreendi-vos), que foi acolhida em delírio pela multidão de colonos pieds-noirs que predominavam na assistência. Mais tarde, essa mesma expressão serviu-lhes de acusação a de Gaulle pela traição que diziam ter ele cometido na Argélia.

Já aqui falei anteriormente de um outro discurso de de Gaulle sobre o Québec, e ficou dali subentendido que considero que o general era pessoa que não se ensaiava nada de dizer o que lhe interessava, mesmo quando isso pudesse ser inconveniente. E quando se lê e ouve (no YouTube) o que ele disse naquele dia, percebe-se como a síntese do discurso que proferiu não pode ser a expressão inicial. Ele compreendeu-os, mas também os avisou que eles têm de fazer as pazes:
Compreendi-vos!

Sei o que se passou aqui. Vejo o que quiseram fazer. Vejo que a estrada que abriram na Argélia é a da renovação e da fraternidade.
E digo renovação em todos os sentidos. E, muito justamente, quiseram que ela começasse pelo princípio, ou seja, pelas nossas instituições e é por isso que aqui estou.
E falo de fraternidade porque vocês oferecem este espectáculo magnífico de homens que, de uma ponta à outra, quaisquer que sejam as vossas comunidades, comungam do mesmo ardor e dão as mãos.
Pois bem, registo tudo isso em nome da França e declaro, que a partir de hoje, a França considera que, em toda a Argélia, há apenas uma categoria de habitantes: há só franceses por inteiro; franceses por inteiro, com os mesmos direitos e os mesmos deveres.

Isso significa que é necessário abrir caminhos que, até agora, estavam fechados para muitos.
Isso significa que é necessário dar condições de vida aos que as não tinham.
Isso significa que é necessário reconhecer dignidade àqueles a quem era contestada.
Isso quer dizer que é necessário assegurar uma pátria aos que podiam duvidar de ter uma.
O exército, o exército francês, coerente, ardente, disciplinado, sob as ordens das suas chefias, o exército posto à prova em tantas circunstâncias, e que, mesmo assim, conseguiu aqui uma obra magnífica de compreensão e pacificação, o exército francês foi nesta terra o fermento, o testemunho, e é o garante do movimento que aqui se desenvolveu.
Soube canalizar a torrente para lhe captar a energia. Presto-lhe a minha homenagem. Exprimo-lhe a minha confiança. Conto com ele hoje, e para o futuro.

Franceses por inteiro, fazendo parte de um único e mesmo colégio (eleitoral). Vamos mostrá-lo, já daqui a três meses, na ocasião solene em que todos os franceses, incluindo os 10 milhões de franceses da Argélia, terão de decidir o seu próprio destino.
Para estes 10 milhões de franceses os seus votos contarão tanto como os votos de todos os outros.
Terão que designar, eleger, repito-o, num colégio (eleitoral) único, os vossos representantes para os poderes públicos, como o farão todos os outros franceses.
Com esses representantes eleitos, veremos como fazer o resto…

Ah! Que possam participar em massa, nessa imensa demonstração, todos: das vossas cidades, dos vossos douars*, das vossas planícies, dos vossos djebels*! Que possam participar mesmo aqueles que, por desespero, acreditaram levar a cabo neste solo um combate que reconheço, eu, ser corajoso… porque não é a coragem que falta na terra da Argélia; mas que, mesmo sendo um combate corajoso, não deixa, por isso, de ser cruel e fratricida.

Sim, eu, de Gaulle, a esses, abro as portas da reconciliação.
Nunca tanto como aqui e nunca tanto como nesta tarde, compreendi quanto é bela, quanto é grande, quanto é generosa, a França!

Viva a República!

Viva a França!


Tirando uma ocasião (em Mostaganem – e hoje pensa-se ter sido um daqueles lapsos mais entusiasmados à de Gaulle…), em todos os discursos que proferiu nessa visita, nunca de Gaulle empregou a expressão Argélia Francesa, que seria a fórmula política de mostrar que compreendera os pieds-noirs da forma que eles queriam ser compreendidos. Manifestamente, de Gaulle dissera o que queria dizer, não aquilo que queriam que ele dissesse. O resto da história da Argélia colonial é conhecida:

Em 5 de Julho de 1962, depois de um referendo**, a Argélia tornou-se independente e o milhão de pieds-noirs abandonou o país. É verdade que as condições eram distintas, mas não existia ninguém na FLN daquela época que tivesse o perfil de um Nelson Mandela***, nem, sobretudo e entre a comunidade pied-noir, houvera alguém que tivesse tido a ponderação de reconhecer as evidências da situação política global, como aconteceu com o hoje injustamente esquecido F.W. de Klerk****
*Douar: acampamento de nómadas, constituído por tendas. Por extensão, aldeia, na África do Norte. Djebel: montanha ou maciço montanhoso. Note-se o contraste no discurso com as cidades e as planícies, os locais de assentamento dos pieds-noirs.
** Seis milhões de votos favoráveis à independência entre seis milhões e meio possíveis. Os pieds-noirs (meio milhão de votantes) preferiram abster-se de participar no referendo, em vez de votarem negativamente.
*** Dirigente do ANC sul-africano e Presidente da África do Sul (1994-99)
**** Último presidente sul-africano sob o regime do Apartheid (1989-94)


Duas notas finais sobre o discurso propriamente dito: o primeiro para agradecer à Conceição e ao Pedro, à conta dos quais ando a fazer uma figura imerecida de tradutor dos discursos de de Gaulle. Os méritos a quem os merece. A segunda para chamar a atenção como a reportagem da época, reproduzida no You Tube não contém (apropriadamente…) o conteúdo total da alocução.

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