14 junho 2007

O VOO 8969

Poucos serão os que ainda se lembrarão hoje das vicissitudes associadas ao sequestro do voo 8969 da Air France e de como o detalhe dos acontecimentos verificados naquela altura, quando devidamente enquadrados com o que viemos a aprender anos depois, já indiciava os objectivos e métodos que vieram a ser postos em prática de forma espectacular nos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001.

Não terá sido ocasional o facto de que o sequestro ter tido lugar na véspera de Natal, a 24 de Dezembro de 1994. Voo 8969 era o código dos voos da Air France que faziam a ligação entre Argel e Paris (Orly), uma carreira tradicionalmente cheia, ainda para mais atendendo à quadra festiva. O aparelho era um Airbus A-300 com 220 passageiros e 12 tripulantes, mas os sequestradores não constavam desta lista…

Segundo se apurou no inquérito subsequente, rigorosamente à hora da saída do voo do aeroporto de Argel os quatro assaltantes apresentaram-se a elementos da tripulação do Airbus vestidos como funcionários da Air Algérie (a companhia nacional argelina) invocando um problema técnico que tornaria necessária a sua entrada. Armados de armas automáticas, rapidamente se apoderaram do avião.

O comando terrorista reivindicava-se como pertencente ao Grupo Islâmico Armado (GIA), um grupo terrorista argelino de oposição ao governo militar então em vigor na Argélia e reconhecido pelo facto de muitos dos seus dirigentes e membros terem sido antigos combatentes no Afeganistão… Aliás a seriedade das suas ameaças e a intensidade do seu ódio às autoridades argelinas não tardaram a ser demonstradas…
Ainda não se haviam passado três horas sobre o sequestro e, perante a primeira recusa para a descolagem, o comando executou imediatamente o seu primeiro refém, um membro da polícia argelina que eles haviam identificado ao recolherem os pertences de todos os passageiros. O corpo do refém executado foi largado à frente de toda a comunicação social e estava estabelecido o início de um duro processo de negociações.

A essa dureza acrescia o problema da negociação ser triangular: o incidente tinha tido lugar em território argelino, com terroristas argelinos, mas a aeronave era francesa e as autoridades francesas insistiam em estar à frente das negociações, tanto mais que a exigência do comando terrorista as envolvia e as deixava bastantes intrigadas: o comando terrorista pretendia que o avião descolasse e seguisse para Paris…

Os franceses acordaram em conceder essa autorização desde que as mulheres e as crianças reféns fossem libertadas, o que veio a acontecer (63 pessoas). Mas a autorização para que o avião descolasse dependia também das autoridades argelinas, que não se mostravam com grande vontade de delegar nas suas homólogas francesas a resolução da situação, depois da execução do primeiro refém, um dos seus.

O comando, apercebendo-se disso, retaliou embaraçando a posição internacional da Argélia, executando um diplomata vietnamita que seguia a bordo. O aspecto político radical da guerra civil argelina parecia estar a predominar em todo o incidente: um grupo de assalto argelino pretendia assaltar o aparelho mas os franceses só estavam dispostos a consenti-lo se o seu próprio grupo de assalto os acompanhasse.
O dia de Natal passou-se em toda esta actividade negocial triangular, até que à noite, como que antecipando o que se estava a passar, o comando anunciou e procedeu à execução de um terceiro refém, um empregado da Embaixada francesa em Argel, como que querendo reforçar a argumentação dos franceses frente aos argelinos… O Airbus-300 foi finalmente autorizado a descolar…

Mas não para Paris. Os franceses haviam sido informados que os terroristas haviam colocado explosivos no aparelho. Invocando insuficiência em combustível o Airbus francês aterrou no aeroporto de Marselha, o primeiro aeroporto francês do seu plano de voo e onde já se encontrava o grupo de assalto preparado pelos franceses. O assalto teve lugar às 5 da tarde de dia 26, enquanto se fingia discutir ainda a continuação do voo até Paris (vejam-se as imagens).

Com os quatro assaltantes mortos (é a versão oficial…) ficou a especulação de quais seriam as suas intenções. As autoridades francesas realçaram que o comando havia pedido o triplo do combustível necessário para o voo até Paris, o que, conjugado com os explosivos, seria um indício que o objectivo da operação era o de se imolarem sobre Paris, antecipando em sete anos o que veio a acontecer em Nova Iorque.

Sabemos hoje que esse cenário, fantástico naquela altura, tornou-se hoje bem credível. O indício é que é muito fraco: aqueles não foram os primeiros e não serão os últimos piratas do ar a aumentarem as suas hipóteses de planos de voo alternativos ao original, reforçando os reabastecimentos de combustível. Mas, se os franceses tiverem razão, os fracassos da operação do voo 8969 terão sido muito instrutivos...
Em primeiro lugar, concluia-se que era contraproducente sequestrar aviões em aeroportos que fossem frontalmente hostis à causa dos sequestradores. Os argelinos estavam com uma vontade de fazer a folha aos terroristas independentemente das baixas que causassem entre os reféns que foi precisa toda a persuasão dos franceses para não o fazerem… para depois serem os próprios franceses a fazê-lo! Refira-se que, além dos 3 reféns executados, houve 13 passageiros e 3 membros da tripulação, além de 11 elementos do grupo de assalto, que ficaram feridos nas operações de libertação.

Mas muito mais importantes terão sido as outras duas conclusões: a de que, para minimizar as capacidades de reacção, qualquer operação daquele cariz teria que ser concretizada o mais rapidamente possível depois do comando terrorista se apossar do avião e que os membros do comando não podiam estar dependentes da colaboração (ou não) dos pilotos* e teriam que ser autónomos quanto à capacidade de pilotar o avião de que se apossaram... São os dois elementos essenciais das operações do 11 de Setembro de 2001…

* Nas imagens da operação de resgate, vê-se um dos pilotos (trata-se do co-piloto) a fugir por uma das janelas do cockpit do avião, saltando para o chão.

3 comentários:

  1. Elucidativo. Tenho uma vaga ideia de ter ouvido falar deste caso. Também de um plano de atentado contra a Torre Eiffel, de avião; e ainda outro contra a Catedral de Estrasburgo, creio que precisamente na vÊspera de Natal desse ano. Planos combinados ou alternativos?

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  2. O facto de se ter passado em plena quadra natalícia fez muito para que o episódio tenha passado desapercebido.

    No meio das incertezas que tento transmitir no poste, é possível que as referências à Torre Eiffel em Paris e à Catedral de Estrasburgo fossem os alvos primário e secundário, assim como acontecia com cada operação de bombardeio, durante a Segunda Guerra Mundial...

    É uma ideia e uma analogia engraçada, não digo que tenha sido verdadeira...

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  3. Enfim, relendo o que escrevi, tenho que admitir que o qualificativo de "engraçada" não será o mais feliz.

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