06 junho 2007

GUERRAS ESQUECIDAS (1): A GUERRA SINO-INDIANA DE 1962

No dia em que a China e a Índia pretenderem envolver-se num conflito a sério não vão precisar de muito tempo para arranjar um pretexto para o desencadear. Tanto assim é que, de um e outro lado, cada potência tem na sua carteira o pretexto para causar sarilhos do lado do oponente: os guerrilheiros naxalitas de inspiração revolucionária maoista que operam nalguns estados do nordeste da Índia serão nessa eventualidade a quinta coluna dos chineses e, embora de aparência mais pacífica, as directivas que o Dalai Lama (que reside no norte da Índia) possa fazer à população tibetana, da qual permanece o chefe espiritual, poderão plausivelmente causar o caos nas retaguardas chinesas.

Por outro lado, toda a extensa fronteira que separa a China e a Índia é composta maioritariamente pelo território inóspito das zonas mais elevadas da cordilheira dos Himalaias e foi traçado nos inícios do século XX, confrontando, à mesa das negociações, os interesses do Reino Unido, no zénite do seu poder (de facto, a superpotência mundial) e os da China, no nadir do seu. Quer todo este preâmbulo deixar claro que as potencialidades de conflito entre os dois gigantes asiáticos eram e são infinitas e que a pergunta a fazer não será o que é que desencadeou a guerra mas antes o que terá acontecido em 1962 para que os dois países se decidissem a defrontar-se militarmente.

A República Popular da China, até devido à forma como fora criada depois de uma vitória numa guerra civil nunca tivera quaisquer problemas quanto ao recurso ao uso da violência. Provara-o logo dois anos depois do seu nascimento intervindo na Guerra da Coreia. O mesmo não se passava com a Índia, que tinha uma imagem de pacifismo a preservar, herdado do estilo ímpar do Mahatma Ghandi, a figura reverencial que presidira ao nascimento da nação. Mas era uma preocupação que se manifestava mais na aparência do que na substância: à data da independência (1947) o novo estado indiano mantivera e até reforçara o dispositivo do Exército Indiano que herdara dos britânicos.

O problema do outro lado dos Himalaias era precisamente o simétrico do da Índia: a aparência da política externa chinesa era marcada por uma retórica tremendamente agressiva, da responsabilidade de Mao Zedong (que assustava e que contribuía muito para transformar a China no estado pária raivoso onde a diplomacia norte-americana a queria colocar), enquanto as manobras suaves, mas mais construtivas, estavam a cargo do primeiro-ministro Zhou Enlai. A participação chinesa na conferência de Bandung de 1955, quando Zhou declarou que a lealdade política dos membros da diáspora chinesa devia privilegiar os países onde habitavam, é disso um exemplo flagrante.
Mas nem toda a flexibilidade de Zhou Enlai poderia resolver o problema do traçado fronteiriço sino-indiano. Os britânicos, na perspectiva da defesa da posição meridional indiana, haviam-no desenhado assegurando-se de todos os pontos convenientes, assim como alguém se assegura que as suas calças não caem usando cinto e suspensórios ao mesmo tempo… O nacionalismo indiano triunfante transformara, depois da independência, regiões com fronteiras de contornos muito imprecisos (veja-se o mapa de cima) em territórios descaradamente reclamados pela Índia como se comprova pelo mapa de baixo. Querendo tudo, a Índia caía na armadilha da situação de ter que ser ela a ceder qualquer coisa perante a China.
Estruturalmente, a China sempre teve um problema com as suas duas províncias do extremo ocidental (assinaladas a cinzento, no mapa abaixo): o Xinjiang, povoada por uígures de confissão muçulmana e o Xizang ou Tibete, onde os tibetanos são de confissão budista e obedientes a uma hierarquia encabeçada pelo Dalai Lama. Três anos antes destes acontecimentos (1959) este havia fugido do Tibete e refugiara-se na Índia. A China estava ainda na expectativa do que o primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru poderia fazer da sua presença. Por outro lado, o ano seguinte, de 1960, é o da consumação da ruptura sino-soviética. A China vivia então sob uma certa impressão de cerco.
Do outro lado, a sensação era completamente diferente, a Índia aumentara a sua auto-segurança. Em primeiro lugar, através da assinatura de um Acordo com o Paquistão sobre o uso das águas do Rio Indo e seus afluentes (1960). Era um acordo que transcendia muito os benefícios funcionais, porque significava também uma distensão nas relações entre os dois herdeiros da Índia Britânica, desavindos por causa do conflito de Caxemira. O segundo motivo, com reflexos tanto no campo militar como diplomático, resultara da facilidade e da impunidade com que a Índia anexara as possessões portuguesas, depois do impasse das negociações, em Dezembro de 1961.

Valha a verdade que parece ter sido desde sempre a intenção chinesa a de levar os indianos à mesa das negociações através de demonstrações militares. Gradualmente o dispositivo chinês nas duas regiões contestadas (como se nota nos mapas anteriores elas estão afastadas por cerca de 1.500 Km) foi aumentando até que a superioridade chinesa em homens e material se tornou incontestável. A resposta indiana foi a de um jogo táctico de colocação de pequenas guarnições em locais privilegiados, como uma espécie de jogo de xadrez jogado com soldados reais e a 5.000 metros de altitude… Em teorias estratégicas, Sun Tzu e A Arte da Guerra defrontavam Kautiliya e O Arthashastra

Só que esta imagem é muito mais sugestiva do que verdadeira: o exército indiano moderno é um verdadeiro descendente do modelo britânico e, como tal, tem uma abordagem tipicamente ocidental para lidar com os problemas estratégicos e tácticos com que se defronta. E os segundos que se colocavam ao exército indiano perante o ELP (Exército de Libertação Popular) chinês não tinham nada do convencionalismo da invasão indiana a Goa, Damão e Diu. Os britânicos não haviam deixado grande tradição nem doutrinas de combate para unidades de montanha (as ameaças à Índia britânica eram outras…) e, ultrapassando um pouco o detalhe dos diversos recontros, os indianos levaram uma tareia das grandes…

Note-se que, se os combates duraram de 10 de Outubro a 20 de Novembro de 1962, tão tarde quanto a data de 3 de Outubro, Zhou Enlai ainda fez uma visita a Nova Deli, ao seu homólogo Nehru, na esperança de obter ainda uma solução negociada quando a facção dura do lado chinês (Lin Biao, o ministro da defesa) já se preparava para a ofensiva eminente. O que a China pretendia, de facto, e como os acontecimentos posteriores vieram a demonstrar, era sobretudo o contrôle de uma parcela de território disputado (Aksai Chin - abaixo) onde passava a estrada de primordial importância estratégica para a China que, acompanhando a fronteira, fazia a ligação directa entre o Tibete e o Xinjiang
O detalhe das operações tácticas está pejado de atitudes da parte do ELP que se tornariam incompreensíveis pela gramática ocidental da guerra: retiradas unilaterais para posições 20 Km à retaguarda de posições que anteriormente haviam sido conquistadas depois de combates árduos ou cerimónias formais com honras militares de enterro dos inimigos mortos realizadas em zonas próximas da frente de combate por forma a que elas fossem vistas pelos indianos… Nos 40 dias de combates, nas duas frentes de combate, terão morrido cerca de 5.000 soldados (2/3 deles indianos) e os chineses terão feito, para além disso, cerca de 4.000 prisioneiros.

A China conseguiu o que queria e a Índia e o exército indiano tiveram que recolher as penas com que se pavoneavam por terem derrotado Portugal e o exército português na Índia, cujo plano táctico se resumira à produção de umas centenas de mártires para apresentação à mesa das negociações… Desde aí, para além de um cuidado muito maior na doutrina de emprego das unidades de montanha (que já lhe foi útil contra o Paquistão, em Kargil em 1999) o Exército Indiano preocupou-se em adquirir uma capacidade de reacção rápida usando o transporte aéreo que já demonstrou toda a sua utilidade em 1987, ao responder à movimentação discreta de um contingente chinês nas regiões ainda disputadas com a deposição quase imediata no terreno de uma brigada aerotransportada para o bloquear, surpreendendo totalmente os chineses.

2 comentários:

  1. Temos a Formosa ainda à espera...

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  2. A respeito precisamente da Formosa, e mesmo correndo o risco de poder ser tomado por petulante ao citar-me a mim próprio, a preguiça pura leva-me a encaminhar a minha resposta sobre a minha opinião sobre a importante questão que levanta para um poste que aqui escrevi há uns meses atrás:

    http://herdeirodeaecio.blogspot.com/2006/09/la-guerre-de-taiwan-naura-pas-lieu.html

    Acredite, João Moutinho, que não é por falta de consideração que lhe respondo com um link: é mesmo a minha preguiça…

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