04 janeiro 2007

ARTHUR PERCIVAL, O GENERAL QUE NÃO SUCUMBIU AO LIRISMO

Algum britânico, pouco patriota, mas com uma mente brilhante e perversa, reparou e fez notar como os seus compatriotas da época vitoriana passaram a adorar transformar desaires militares em grandes epopeias, como se houvesse um oculto prazer masoquista em dar destaque a episódios onde as forças britânicas haviam dado mostras de toda a sua bravura incompetentemente aplicada. O exemplo provavelmente mais famoso é o de um pequeno incidente inserido na Batalha de Balaclava (1854) na Guerra da Crimeia (1854-56), que ficou conhecido pela carga da brigada ligeira, que até teve direito a ficar imortalizado num poema de um famoso poeta britânico daquela época, Alfred Tennyson.

Sumariamente, cerca de 700 cavaleiros britânicos carregaram cegamente por um vale (depois poeticamente baptizado de Vale da Morte), onde foram recebidos por uma fuzilaria tremenda das tropas russas que os aguardavam em posições defensivas preparadas. No fim da acção, descontando os cavaleiros que haviam sido mortos e feridos com gravidade e os que haviam ficado apeados porque a sua montada havia sido atingida, a brigada estava reduzida a um pouco menos de 200 cavaleiros capazes de continuar o combate… E os russos ainda não tinham sido desalojados das suas posições. Os cavaleiros britânicos ficaram com a fama de terem em excesso, no recheio dos tomates, aquilo que lhes faltava em excesso, no recheio do cérebro*…

Entre nós, seria num espírito parecido que Luís Vaz de Camões poderia ter composto uma das suas melhores Odes dedicada ao tema dos acontecimentos de 4 de Agosto de 1578, em Alcácer Quibir…

Foi sob as ordens de um líder político que sempre se enternecera com a lírica de Tennyson (a referência é a Winston Churchill, evidentemente) que o General Arthur Percival assumiu o cargo de GOC da Malásia, cujo Quartel-General se situava em Singapura, em Maio de 1941. O Império Britânico estava em guerra com a Alemanha desde há quase dois anos. Havia a planificação feita para defrontar a eventual ameaça japonesa e a realidade da real ameaça alemã e italiana: tudo o que ali houvesse de qualidade, quer em termos humanos como materiais, já havia sido sugado para o Teatro de Operações do Mediterrâneo. Como exemplo flagrante, em Dezembro de 1941, em vez da dotação de 336 aviões de combate modernos que estariam previstos, havia 158 e de tipos obsoletos.

Havia esta realidade, onde o único dado objectivo que a contraria é a grande vantagem numérica dos defensores (135.000 versus 30.000 japoneses) e há depois todos aqueles constrangimentos que sempre aparecem nas análises que se fazem à posteriori das derrotas militares: o conflito entre as várias directivas que Percival recebera, a sua má relação com os subordinados imediatos (um mais antigo – Heath – e outro dependendo de um poder político autónomo – o australiano Bennett) ou as suas peculiaridades de carácter, que se fariam sentir na falta de um exercício claro de um ascendente sobre os seus subordinados directos, a fazer lembrar o que se adivinha que se terá passado com Souto Moura…

Enquanto se aguarda a passagem do tempo que permita fazer um julgamento mais lúcido sobre a actuação do anterior PGR, ficamos com a de Arthur Percival que, quando se apercebeu da inutilidade da resistência das suas forças, cercadas em Singapura e sem possibilidade de rompimento desse cerco, se rendeu em 15 de Fevereiro de 1942. Percival optou pela rendição apesar das pressões que estava a receber directamente de Churchill para o prolongamento da sua resistência, senão mesmo para algum episódio de última hora na linha da carga da brigada ligeira, repleto de significado poético, de aproveitamento político, de mais mortos e feridos e sem qualquer impacto para o desfecho táctico imediato do conflito…
Daquela vez, a derrota britânica não foi acompanhada de um episódio lírico para a amenizar junto da opinião pública britânica. Percival, que salvara momentaneamente a vida dos seus homens, sabendo reconhecer o momento da derrota e a inutilidade do prolongamento dos esforços de resistência – ninguém lhe contesta a sua grande competência enquanto oficial de estado maior - nunca veio a ser verdadeiramente perdoado pela sua decisão. Não tendo entrado nos livros de história, espera-se que, no resto da sua vida (morreu em1966), Percival deva ter tido um melhor convívio com a sua consciência ao ter tomado a decisão que tomou…

Rigorosamente o mesmo desejo perante a mesma atitude de Vassalo e Silva, o último Governador da Índia portuguesa em 1961, que tomou a mesma decisão perante a mesma situação militar e as mesmas pressões políticas…
* Há quem diga - maldosamente! - que é um princípio que se aplica à cavalaria (a cavalo) em geral. É o tipo de redistribuição de peso que lhes facilita o equilíbrio em sela...

5 comentários:

  1. Ao ler o post, estava exactamente a lembrar-me do caso da Índia Portuguesa.
    Espero é que os soldados ingleses tenham, no regresso à pátria, tenham sido tratados com mais consideração que osportugueses.

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  2. Não conheço a situação concreta dos prisioneiros feitos na Malásia mas, como regra da generalidade das guerras, os prisioneiros – sobretudo os pertencentes ao lado vencedor – são tratados depois delas com uma enorme discrição, uma vez que são provas vivas da fragilidade da vitória alcançada, contraditória com a mensagem política que se pretende transmitir.

    A propósito deles (os prisioneiros da Malásia), deixe-me adicionar um poste a respeito da sua libertação. E, a propósito do seu comentário, deixe-me aproveitar este comentário para lhe agradecer as suas amáveis referências e ligações que fez no seu blogue. Sabia que é pessoa difícil de contactar na blogosfera? Tentei deixar-lhe um comentário, o censor da segurança não gostou, mandei-lhe correio para o endereço lá mencionado, veio-me devolvido…

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  3. Parece-me que o espírito dos “Kamikazes” tem mais impacto nos políticos, que raramente deixam a vida durante as funções que exercem, do que nos militares que utilizam a cabeça – também existem militares que a dispensam.

    Neste aspecto creio que os comandantes ingleses tiveram uma noção muito reduzida do valor da vida humana, que os levou a operações sem nexo na 1.ª Grande Guerra.
    Podemos dizer que os japoneses, na 2.ª Grande Guerra, também tinham o mesmo espírito... e os soviéticos conseguiram, de longe, bater todos as outras forças beligerantes: com efectivos pouco superiores aos norte-americanos, tiveram baixas multiplicadas por 5!
    A Grã-Bretanha, com efectivos de 1/3 em relação aos norte-americanos, “conseguiu” ter quase o dobro das perdas.
    Não sei se os militares de SAR fizeram as contas no fim do “exercício”, mas não ficaram muito bem na fotografia!!!
    Pior ficariam sem o general A. Percival...

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  4. É arriscado e pouco conclusivo fazer as contas das baixas globalmente em relação a todo o COnflito como creio que fez, Impaciente.

    Primeiro, porque há que contar a duração da participação na Guerra: a britânica e a alemã durou 6 anos (1939-45), mas a japonesa, norte-americana e soviética apenas 4 (1941-45).

    Depois há que contar com o próprio historial da guerra: os norte-americanos não sofreram derrotas pesadas à excepção das Filipinas e Guam; os britânicos tiveram-nas em Dunquerque, Grécia, Creta, Hong-Kong, Malásia, Birmânia,... E as dos soviéticos então, em 1941 e 42, foram verdadeiras hecatombes...

    Depois há que contar com o atrito próprio do Teatro de Operações: o ritmo de baixas por 100.000 combatentes no exército alemão era, salvo erro, quase 100 vezes superior na Frente Russa ao que era em África...

    Surpreendê-lo-ia se lhe disesse que, em condições semelhantes (a Frente da Europa Ocidental em 1944-45), o ritmo de baixas por 100.000 combatentes era muito semelhante entre britânicos e norte-americanos?

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  5. Não me surpreendem esses números!
    Embora os norte-americanos tivesem entrado já com o comboio em andamento, tiveram que fazer linha para duas frentes: a europeia (incluíndo o norte de África) e o Pacífico.
    No teatro europeu, depois da entrada dos EUA no conflito, creio que a Grã-Bretanha ganhou uma vantagem, em material, que não possuía, face à Alemanha.
    Quanto à União Soviética essa vantagem nunca existiu e o material bélico alemão foi sempre superior – mesmo com as limitações do final da guerra. Aqui foi o número que contou...

    Em Estalinegrado von Paulus também tomou a decisão de se render: poupou 91 000 vidas, ao arrepio da vontade de Hitler. Prova da lucidez de um militar face à estupidez de um político!!!

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