01 dezembro 2006

DESTE LADO DOS HIMALAIAS – 2

Antes de passar ao budismo convém realçar o que ambas as religiões compartilhavam enquanto movimentos de reacção à mesma sociedade de onde emergiram. E para o fazer há que descrevê-la, ainda que resumidamente. Uma das suas características mais identificativas é a sua estruturação por castas. Simplificadamente, elas são quatro (funcionalmente cinco), e por ordem decrescente de estatuto existe a casta sacerdotal (brâmanes), a guerreira (xátrias), a comercial (vaicias) e a camponesa e artesanal (sudras). A quinta casta, no sopé da hierarquia, é composta por aqueles que são marginalizados por não pertencerem a qualquer casta.

Hereditárias, dá para perceber como o decorrer das gerações torna o sistema de castas desajustado até que ao fim de umas poucas gerações torna-se numa aberração, sem qualquer correspondência com a realidade social. Numa analogia nacional, seria como se o apelido Silva fosse um indicativo de origem e casta humilde, isso desaconselharia, em termos religiosos, a ascensão do actual presidente português ao cargo que ocupa… Embora sejam de casta xátria tanto Mahavira (fundador do jainismo) como Siddhartha Gautama (fundador do budismo), o campo de recrutamento por excelência das duas novas religiões, fundamental para a fase das expansões do número dos seus aderentes, é na casta dos vaicias, muito dos quais haviam enriquecido sem estarem a receber o reconhecimento desse facto no quadro da estratificação da hierarquia social estabelecida.

BUDISMO

Apesar de, como se viu atrás, compartilharem o local e a época da sua génese, e de ambos, apesar de não atacarem directamente o sistema das castas, se oporem à sua existência, o budismo contém em si elementos que o podiam transformar numa religião muito mais apelativa e, por isso, muito mais popular do que o jainismo. Este, como foi frisado anteriormente, só por si, tornava-se logo extremamente selectivo quanto à forma de viver os ensinamentos da religião.

Em contraste, também como religião revolucionária, o budismo era uma religião muito mais flexível. O seu fundador, Siddhartha Gautama, era da casta xátria e, (bem) nascido por volta de 566 a.C. (outra vez o problema da falta de rigor destas datas…), viveu uma vida confortável – embora se tivesse tornado órfão de mãe muito cedo – até ter decidido abandonar a família e viver uma vida de asceta. Depois de seis anos de ascetismo decidiu que essa não era o verdadeiro caminho e optou pela meditação para a procura da verdadeira via da salvação. Foi ao 49º dia dessa meditação – debaixo de uma figueira - que ele veio a atingir a iluminação para compreender a causa dos sofrimentos deste mundo.

Buda pretende significar literalmente o desperto (do sânscrito budh: despertar) ou o iluminado. Com o seu primeiro sermão Gautama adquiriu os seus primeiros cinco discípulos. Como aconteceu com todas as outras religiões que já aqui se abordaram (e com as outras, que com o cristianismo e com o Islão aconteceu precisamente a mesma coisa…), também no budismo os ensinamentos do mestre foram primeiro memorizados e transmitidos por via oral até muito mais tarde se cristalizarem numa forma escrita.

Esse sermão original deverá ter sido, muito provavelmente, reelaborado continuamente até apresentar a sofisticação com que chegou até aos nossos dias. Nele estão condensados os ensinamentos essenciais do budismo e têm um grande significado as metáforas associadas à simbologia das rodas. Existem as Quatro Nobres Verdades: o mundo está cheio de sofrimento, este é causado pelo desejo humano, a renúncia ao desejo é o caminho para a salvação e essa salvação é alcançável através do Caminho Óctuplo. Este último deve ser percorrido através duma vida regrada obedecendo à correcção de oitos aspectos salientados: compreender, pensar, falar, agir, ter um meio de vida, estar atento, desenvolver a sabedoria e a visão sempre de uma forma correcta.

A salvação atingir-se-á com o nirvana, o estado supremo de libertação do ciclo (da roda) da vida, morte e renascimento – um objectivo último muito semelhante ao mencionado pelo jainismo. Como neste, também no budismo não existe a necessidade de um Deus que crie e oriente o Universo que se rege pelos eternos ciclos de ascensão e declínio, aqui explicados em metáforas associados a rodas.

Mas onde o jainismo é deliberadamente selectivo – uma espécie de Maçonaria ou Opus Dei, mas assumida ostensivamente – o budismo pretende ser muito mais popular, apelando, além dos vaicias também à casta dos sudras e aos excluídos. Os ensinamentos de Buda (rigorosamente o primeiro Buda, porque qualquer discípulo pode vir a atingir o estatuto de iluminado) começaram a ser difundidos em linguagem popular em vez do sânscrito clássico, através de discípulos dedicados inteiramente à fé. A vida monástica é uma criação do budismo, tanto através da concentração dos monges em mosteiros, como através dos frades que se deslocavam pregando.

O número de conversões é capaz de ter atingido um número tal que, a comunidade começou a tornar-se uma proporção significativa da população indiana por volta do Século III a.C., quando o poderoso imperador Açoka se converteu também ao budismo. As analogias com o que Constantino veio a fazer mais tarde quando, no Século IV d.C. adoptou o cristianismo no Império Romano, têm de ser feitas com cautela, porque as intervenções de Açoka no 3º Concílio Budista (chamemos assim às reuniões magnas onde se procuravam conciliar as divergências sobre a doutrina, à imagem do que muito mais tarde se fez para o cristianismo), em Pataliputra, em 250 a.C., nada têm do intervencionismo de Constantino no Concílio de Niceia em 325 d.C.

Os dois Concílios, apartados de 575 anos, compartilhavam, apesar disso, muitos dos problemas que se punham aos membros presentes. Uma das discussões nucleares era o do confronto entre a ortodoxia doutrinária e a flexibilidade necessária para que a religião se adaptasse a outros espaços culturais para onde ela se estava a expandir. No caso do cristianismo era a heresia do arianismo, prevalecente entre as tribos germânicas. No caso do budismo, preparava-se a cisão entre a ortodoxia theravada – hoje dominante na Birmânia, Tailândia, Sri Lanka, Cambodja e Laos – e a heresia mahayana, que se afigurava promissora a preencher o gigantesco espaço da China, o que veio a acontecer.

Sintética e simplificadamente, enquanto o budismo theravada possui um conteúdo mais individual e mais rigoroso quanto à doutrina e ao cumprimento das suas normas de conduta, o budismo mahayana, que, quando penetrou na China, se adaptou e não escolheu uma via de confrontação com as outras religiões já existentes (como o Taoismo e o Confucionismo), desenvolveu um conteúdo mais gregário e tolerante, permitindo mesmo ao seu adepto a prática de diversos rituais de religiões distintas. Na China é comum praticar-se o budismo e taoismo, ou o budismo e seguir-se os preceitos confucionistas e no Japão, a acumulação faz-se com a religião nacional nipónica, o xintoismo.

Importante que foi no subcontinente indiano, a presença ali do budismo é actualmente irrisória. Uma das razões terá estado na existência de uma espécie de contra-reforma religiosa do hinduísmo, oriunda do Sul, que se verificou durante o primeiro milénio da nossa era; a outra razão, estará na chegada em força do Islão à Índia (Século XII) que substituiu o budismo como religião alternativa aqueles que se mostravam descontentes com o sistema de castas vigente, tendo até possivelmente convertido a maioria dos budistas indianos.

Terminando com outra curiosidade, a actual bandeira indiana inclui no seu centro um dos mais conhecidos símbolos budistas: a Roda de Açoka.

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