29 novembro 2006

COMO QUEIRA…

Em Maigret se fâche, de Georges Simenon, existe uma cena inicial que considero de antologia e em que, ao contrário do título*, Maigret dá provas de uma paciência incomensurável. Tudo começa com o Comissário na sua casa de campo, para onde se retirara depois de se aposentar da PJ, numa bela manhã, com Maigret com umas calças de cotim azul e camisa de camponês, calçado com uns tamancos e à volta de umas beringelas que plantara no quintal das traseiras quando depara com uma aparição que, falha de paciência de esperar a reacção ao toque da campainha da entrada, ali desembocara.

Era uma velha, burguesa, vestida de luto com uma elegância de há duas gerações atrás, mas das decididas:
- Olhe lá, jardineiro… Não vale a pena fingir que o seu patrão não está que eu já me informei ali em baixo… Vá dizer-lhe imediatamente que Bernardette Amorelle acaba de percorrer cem quilómetros para lhe falar!E Maigret irónico: - Se quiser dar-se ao incómodo de entrar…
- Aposto que o Comissário está a dormir a sesta. Continua gordo como antes?
- Conhece-o bem?

- Que tem a ver com isso? Vá-lhe dizer que Bernardette Amorelle está aqui para lhe falar e não se preocupe com o resto.E, reflectindo melhor, vai rebuscar à carteira algo que, esticando o braço, faz tenção de entregar ao «jardineiro».
- Tome lá, para si…
- Desculpe não poder aceitar, Madame, mas eu sou o ex-comissário Maigret…E aqui a velhinha mostra estar à altura dos acontecimentos: mirando Maigret dos tamancos ao cabelo por pentear, responde com toda a altivez que a enormidade da bronca da situação exige.
- Como queira.

Muitas vezes me deparei na vida com episódios onde se ensaiaram saídas de situações melindrosas com gestos muito parecidos com este Como queira da velha que, falha de qualquer outro elemento onde se agarrar, apenas lhe resta a dignidade e a altivez de quem tem a última palavra, nem que seja para dizer uma inocuidade. Há este tipo de pessoas, e depois há os outros, a maioria, que ficam com vontade que a terra os engula ali naquele momento…

Mas, apesar das aparências, para qualquer interlocutor daqueles habilidosos que não seja estúpido, será sua a decisão em continuar ou não a gozar o pratinho depois de uma barracada tão espectacular. Afinal, ninguém mandou aquela velha, ou todos os outros que se entalaram em situações semelhantes, porem-se a falar sobre aquilo que não conhecem. Mas, apesar da altivez que, dadas as circunstâncias, nunca consegue lavar o ridículo, convém dizer que lhes fica bem a contrição de reconhecerem a ignorância, como acontece, por exemplo, com o ponto 2 e a adenda final deste poste.

Apesar de tudo, é muito mais honesto que as galgas suscessivas do nosso grande timoneiro.

Nota: Eu suspeito que haverá quem discorde da minha escolha da figura de Maigret, mas alguém conceberá um Jean Gabin de tamancos e calças de cotim a ser confundido por jardineiro por uma velha burguesa?

*Maigret irrita-se ou zanga-se para não utilizar mesmo o plebeísmo que prefiro: Maigret chateia-se.

Adenda de 18 de Dezembro de 2011: O vídeo abaixo mostra a forma como ele foi transposto para filme numa versão televisiva do livro mencionado. A velha burguesa parece ser tão assertiva quanto a do livro, mas parece-me que se perde algo do arcaismo e do ridículo da cena concebida por Georges Simenon, afinal o que a fez merecer este meu destaque.

6 comentários:

  1. E suspeita bem porque Jean Gabin também apareceu em vários filmes mal ataviado, com a barba crescida, etc.
    Aliás, Jean Moncorgé(julgo ser o seu nome verdadeiro)passava grande parte do seu tempo numa propriedade que tinha na Normandia, com os cavalos, as vacas.
    Era, de raiz, um homem do campo, à imagem do pai de Jules Maigret que foi feitor do conde de St. Fiacre, na maravilhosa ficção de Simenon.
    A velhota aqui evocada era fina como um coral, autoritária, senhora do seu nariz. Viria, "par la suite", a fazer chegar a mostarda ao nariz de Maigret.
    Maigret este que (apesar da galharda provocação do nosso Herdeiro) só surge na sua plenitude quando representado por Jean Gabin.
    Aliás, o Calvados é um produto típico da Normandia.
    Sans rancune...

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  2. Mas o tema central deste belo apontamento é a forma como alguém se sai de uma situação delicada em que se colocou ao cometer uma "gaffe".
    A humildade é uma saída aceitável. Mas a nossa velhota optou pela arrogância, quase pelo desprezo, incapaz de reconhecer o lapso ou o julgamento infeliz.
    Faz-me lembrar um deputado socialista francês que, em pleno debate na Assembleia e tendo feito um comentário desastroso, saiu-se com esta:
    -" Pois sim, talvez vocês tenham razão, mas nós temos a maioria ".
    É possível que venha daí a tão ouvida expressão " por maioria de razão".
    Ou será a razão da maioria?

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  3. Feita a provocação - salutarmente respondida! - fica o esclarecimento adicional que Jean Alexis Moncorgé era parisiense (voilá!), ali nascido a 17 de Maio de 1904.

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  4. Se Gabin não foi camponês de raiz, foi por opção o que tem ainda mais significado.
    Já agora, é curioso observar que ele começou por ser cantor e foi um grande sedutor.
    Andou com a Marlene Dietrich e viveu um longo romance com a bela Michèle Morgan (que não era filha do capitão)a quem disse, no filme "Quai des Brumes" (salvo erro) a frase mais famosa do cinema francês : "T'as de beaux yeux, tu sais?".
    Era no tempo em que os homens ainda diziam coisas bonitas às senhoras.
    Se fosse hoje, diria " Ó chavala, anda daí curtir"....

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  5. Muito bom! Mas, no caso de Maigret, também penso que «chateia-se» seria a tradução adequada :)

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  6. Obrigado João.

    Quanto à opção do título, faço-lhe notar, tanto quanto sei, que nenhum dos tradutores do livro a escolheu para a versão portuguesa.

    É que o verbo chatear ainda não é de emprego livre...

    Ainda hoje, choca ouvi-lo a um 1º ministro (Pinheiro de Azevedo) em expressãoo coloquial: "...já é a terceira vez que sou sequestrado esta semana. Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia, pá!..."

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