21 novembro 2006

AS CEM ESCOLAS DE PENSAMENTO

O longo Período dos Estados Guerreiros da China começou algures em meados do Século V a.C., quando o Império Chinês – que, naquela altura abrangia apenas o rio Amarelo e parcelas do rio Yangtzé – se desmembra numa pluralidade de pequenos reinos e só termina em 221 a.C. quando um deles (Qin) vem a conseguir a ascendência sobre todos e a reconstruir a unidade com o seu monarca como imperador.

A curiosidade é que o período, mesmo muito rico em convulsões políticas e militares, não afectou em nada o ritmo de expansão da cultura e civilização chinesas ao longo do vale do Yangtzé, foi um período de significativa evolução tecnológica, com a introdução do ferro no armamento (atrasados em relação à Europa e Ásia Ocidental) e um período fértil no vasto campo das ideias.

O famoso Sun Tzu (Século VI a.C.) fora o percursor de uma vasta escola de pensadores da disciplina por ele criada, mas é na filosofia que se vai assistir a uma época irrepetível pela riqueza da produção teórica e que ficou conhecida para a História da China como o período das Cem Escolas de Pensamento. Das míticas cem, há três delas, indígenas, conjuntamente com uma alienígena (o budismo), que se virão a tornar determinantes para a explicação da História da China até hoje: o confucionismo, o taoismo e o legalismo.

CONFUCIONISMO

Confúcio era um professor itinerante que viveu no Século V a.C., que se deslocava de estado em estado, ensinando, criando discípulos e servindo de consultor aos governantes que estavam interessados nos seus serviços. Como acontece também com muitos dos grandes pensadores da Antiguidade, o que ficou do seu pensamento para a posterioridade não foram os textos da sua autoria, mas as notas compiladas pelos seus seguidores acerca dos seus ensinamentos. É de notar que, apesar de ter sido na sua época um consultor de sucesso, não há a certeza de que Confúcio tenha alguma vez recebido responsabilidades pela implementação daquilo que preconizava.

Centenas de anos de estudos e leituras e inúmeros retoques de milhares de leitores de grande qualidade intelectual aprimoraram os textos dos ensinamentos que lhe são atribuídos, sendo de destacar as contribuições de Mencius, um filósofo do Século III a.C. A preocupação principal do confucionismo centra-se no relacionamento humano. Os subordinados devem referenciar e obedecer aos seus superiores, enquanto estes devem exercer o seu poder de uma forma benevolente e justa. São excelentes princípios, talvez demasiado optimistas para o nosso cinismo ocidental moderno. Mas, intrínseco ao confucionismo está uma aversão congénita à inovação e, por arrastamento, ao progresso, dando sempre como referência os exemplos do passado como fonte de inspiração para a resolução dos problemas correntes. Entre as ideias do confucionismo que mais influência tiveram para a formação do pensamento chinês, vale a pena destacar:

Em primeiro lugar, o confucionismo atribui à família o papel de elemento nuclear da sociedade, e nela, a relação reverencial para com os progenitores é primordial. A lealdade para com os pais sobrepõe-se a tudo o mais, incluindo lealdades para com filhos, cônjuges ou governantes. Em segundo lugar, a visão confucionista da sociedade é basicamente constituída por relações onde está presente o elemento hierárquico. Nas cinco relações chave enumeradas pela doutrina confucionista o elemento assimétrico, de superioridade entre um dos intervenientes e o outro, está presente em quatro: pai e filho, governante e súbdito, marido e mulher e entre o irmão mais velho e o mais novo. Só a relação entre amigos escapa a essa lógica. Em terceiro lugar, a posição exposta pelo confucionismo defende que não só o governante tem a obrigação de governar bem e de fornecer boas condições de vida aos seus súbditos, mas que isso se vem a revelar benéfico para si e para o seu regime a prazo. Se o governante perder o apoio dos súbditos virá provavelmente a ser derrubado porque perderá o mandato divino para governar. Finalmente, o exercício do poder deve preparar-se através de educação específica para esse fim. Se, como se disse acima, Confúcio nunca veio a exercer funções executivas, a verdade é que, através dos seus discípulos, o conhecimento da sua doutrina tornou-se um critério selectivo para a ascensão aos lugares de decisão até se vir a tornar (muitos séculos depois) obrigatório.

Não deve ter havido muitos governantes daquela época que se tenham comportado de uma forma completamente conforme aos ensinamentos de Confúcio. Mas, sem se constituírem como uma oposição política (o que constituiria uma contradição com a lealdade ao governante preconizada pela própria doutrina), os seus seguidores sempre se podiam constituir como uma referência moral e uma elite intelectual que não se coibia de manifestar o seu desprezo por aquilo que consideravam má governação.

TAOISMO

Embora seja um enorme problema apresentar datas precisas para os acontecimentos da China antiga, é razoável assumir que Lao-Tse, o fundador do Taoismo, deva ter sido contemporâneo de Confúcio. Crê-se que, ao invés de Confúcio que era um consultor de grande categoria, mas itinerante, Lao-Tse fosse um alto funcionário de uma das cortes de um dos principados em que a China estava dividida naquela época. Depois do seu principado ter sido derrotado, e a corte aonde pertencia extinta, partiu para o exílio montado num búfalo. Ao chegar à fronteira que separava a China da barbárie, o funcionário alfandegário, Yen-Hi, pediu-lhe que lhe deixasse os seus ensinamentos, o que Lao-Tse fez, após uns dias de paragem para redigir o tratado que o tornou famoso (Tao To Ching), composto por 81 capítulos. Depois partiu e, segundo a tradição, mergulhou na eternidade acompanhado do seu búfalo.

Um dos aspectos principais do taoismo é a forma como ele preconiza a harmonia com as forças da natureza. Um dos aspectos a realçar na vida é o da sua simplicidade. E embora concordando com a visão dos confucionistas sobre a qualidade deplorável dos governantes da época, o gesto adequado do taoismo para isso é o de sobranceiramente ignorá-los. Na sua argumentação, o homem sábio preocupa-se com os seus próprios problemas, prefere ignorar o governo na esperança que ele lhe retribua da mesma forma.
O taoismo como que incita o indivíduo a uma inacção activa, uma espécie de viagem espiritual interior (o étimo Tau pode ser traduzido como o Caminho ou a Via), alheando-se das seduções mundanas, evitando a vida pública, e a dedicar-se à meditação e à ascese. Embora seja de certa forma absurdo falar das recomendações que o taoismo possa fazer a um governante, os ensinamentos que ele possa fazer a um indivíduo que, acessoriamente, seja governante, serão para que se empenhe em conhecer a si próprio e que, com naturalidade, conceda aos seus governados a liberdade para que possam fazer o mesmo.
A filosofia do taoismo veio posteriormente a cruzar-se com as práticas medicinais tradicionais, com crenças populares mais antigas e outros elementos culturais chineses. Não sendo propriamente de origem uma religião, o Taoismo é, de entre as escolas aqui apresentadas, a que reúne melhores condições para se integrar com as crenças ancestrais chinesas. Entre os resultados daquele cruzamento conta-se assim uma religião devidamente estruturada para a adoração das inúmeras divindades ancestrais e a disciplina de artes marciais que conhecemos por Kung Fu.

LEGALISMO

Se, pela terminologia moderna, atribuirmos aos seguidores do Taoismo o qualificativo de líricos, ao dos seguidores do Legalismo será de atribuir o qualificativo de pragmáticos. Os seguidores desta corrente filosófica argumentavam que sendo o ser humano fundamentalmente amoral, nunca poderão ser cativados pelos exemplos e pelos incentivos morais. A única forma de as fazer proceder correctamente é através de um sistema legal forte usando prémios e castigos. Se mesmo as infracções menores forem seriamente punidas, então ninguém se atreverá a cometer crimes. O filósofo Han Fei, que viveu no Século III a.C., defendia que, mesmo que haja ocasionalmente um indivíduo naturalmente bom, que não precisasse de ser coagido a comportar-se devidamente, o governante inteligente não lhe dará qualquer valor distintivo especial. A razão para isso é que as leis do estado só podem ser concebidas e aplicadas esquecendo as excepções. As leis são coercivas e destinadas a todos; não tem qualquer relevância que um certo individuo em particular se pudesse comportar devidamente sem que fosse coagido a tal.

Para Han Fei, a ideia de que o governante devia considerar as opiniões dos seus governados era um absurdo. Embora reconhecesse que o objectivo de um governo era o benefício do povo, manifestava a convicção que o povo era demasiado estúpido para o reconhecer, mesmo que vivesse sob ele. Outro filósofo da mesma escola de pensamento e seu contemporâneo, Li Si (a quem certas narrativas atribuem a responsabilidade pela execução de Han Fei), é ainda mais radical, e defende que o governante deve ignorar não só as opiniões mas até o bem-estar dos seus súbditos. O objectivo do governo deve ser servir os interesses do governante e não os da gente comum. Nas suas palavras se um governante não usar o estado para seu próprio prazer mas, pelo contrário, massacra o corpo e desgasta a cabeça em devoção ao povo, então transforma-se em escravo do seu povo em vez do domesticador do estado. Qual é a honra nisso?

Oriundos normalmente da classe aristocrática e com responsabilidades governativas, os filósofos da escola legalista parecem ter começado, a maioria das vezes, a sua formação imbuídos dos pensamentos da escola confucionista para depois darem uma volta de 90 ou 180º em relação aquilo que lhes fora ensinado. Li-Si, enquanto chanceler do imperador, acabou a ordenar perseguições aos confucionistas. Os legalistas eram muito mais assertivos que os filósofos das escolas concorrentes, sem grande respeito pela tradição e orientados para o futuro, confiantes que podiam criar novas técnicas de governo superiores a todas as praticadas no passado.

Uma pequena nota curiosa final e marginal: enquanto se travavam estas grandes disputas filosóficas na China, do outro lado dos Himalaias, na Índia, travava-se uma outra, também acesa, entre o HINDUÍSMO e o BUDISMO, e onde este último parecia estar a levar vantagem, já se tendo expandido para as regiões que são hoje o Afeganistão e as antigas repúblicas soviéticas…

3 comentários:

  1. E, na nossa política, os vencedores são os Legalistas...

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  2. Obrigado Sofia!

    Quem me faz lembrar, em alguns aspectos, os Legalistas têm sido os Neocons, nos últimos tempos...

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