09 abril 2006

IR POR AÍ

De repente, como que saída por causas desconhecidas do Cântico Negro de José Régio, esta expressão, ir por aí, anda, como outrora acontecia com a saudosa pasta medicinal Couto, na boca de (quase) toda a gente.

E normalmente é empregue não para ir, mas precisamente para não ir, como se comprova nas expressões eu não quero ir por aí ou eu gostava de não ir por aí. Eu não sei se estarei a cometer alguma injustiça, terá sido talvez coincidência, mas costumo associar a popularização desta expressão a Pedro Santana Lopes que, não gostando de ir por aí, gosta de andar por aí.

Mas, um dos maiores encantos do poema de Régio (que insiro no fim) é a capacidade de resistir ao apelo insidioso para que ele venha por ali. Não me parece que Santana Lopes ou quem mais a expressão emprega o façam numa situação em que estejam sujeitos à sedução argumentativa dos oponentes, que justificam, aliás, os brados dos versos finais do Cântico Negro.

Ir ou não vir por aqui, ou por ali, usado na expressão oral e fora do seu contexto é um refinamento desnecessaria e despropositadamente rebuscado. Ali mesmo, sem precisar de ir a lado nenhum, por nenhum caminho em especial.

Cântico Negro
"Vem por aqui" – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou, Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

2 comentários:

  1. Entre o "Sei que não vou por aí!" e o "Sei o que quero e por onde vou!" há uma diferença de postura que me faz pensar!
    Não sei porquê, se tivesse tido a hipótese de escolher, entre os dois, um professor, teria escolhido o Sr. José Régio...

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  2. Provavelmente, Impaciente, provavelmente...

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