08 fevereiro 2006

A MÊLÉE

Para a esmagadora maioria da muito menos esmagadora quantidade de leitores deste blog que não devem perceber grande coisa de râguebi, quero esclarecer que a gravura anexa ilustra uma formação ordenada, embora seja mais chique e corrente designá-la no termo inglês original – scrum – ou usando a expressão francesa – mêlée.

E em que consiste a tal de mêlée? Os oito jogadores mais possantes e entroncados da equipa de râguebi (os avançados) dispõem-se de uma determinada forma (3 + 4 + 1) e encaixam-se no dispositivo idêntico da equipa adversária, procurando, com a coordenação dos esforços, empurrá-la, avançar e ganhar terreno enquanto controlam a bola, que entretanto foi introduzida junto ao chão no corredor existente na fronteira entre as duas equipas.

Visto de fora, com as rotações que o conjunto faz, deliberadamente provocadas por uma das equipas (a mais fraca) ou devidas ao equilíbrio precário em que permanente se encontra, a mêlée parece comportar-se como uma espécie de caranguejo bêbado, ora para cá, ora para lá, até se desfazer nas suas entidades constituintes: os dezasseis jogadores.

Na sua simplicidade, a constituição da mêlée pode ser um excelente exemplo, e visível, ainda por cima, de uma metáfora do funcionamento dos mecanismos de mercado, com a conflituosidade dos interesses das duas partes, a sua organização e a obtenção de um ponto de equilíbrio, sempre precário.

Usando esta simples analogia, torna-se muito mais evidente compreender o absurdo que se anda a praticar, por parte de defensores de correntes de pensamento económico liberal ou ultraliberal, quando, no discurso escrito ou falado, personalizam, para além do bom gosto razoável, o mercado, atribuindo-lhe virtudes de clarividência – o mercado sabe, o mercado reage – e de presciência – o mercado antecipa – que parecem estar vedadas aos comuns mortais.

O mercado, como a mêlée, é composto pelos intervenientes, que se organizam segundo regras estabelecidas de antemão, mas cuja evolução, depois disso, é fruto das circunstâncias. Imaginando que algum dos intervenientes na mêlée se descuida durante a mesma, é previsível que o comportamento do conjunto seja diferente àquele que aconteceria se ele se tivesse sabido conter.

Agora, o que pareceria uma cereja no bolo da estupidez ideológica seria escutar um elogio sobre a hipersensibilidade odorífera da mêlée e/ou uma elaboração sobre a sua capacidade de reacção a ambientes desfavoráveis.
Embora possa parecer absurdo, foi algo de semelhante ao que ainda ontem, a propósito da OPA da SONAE, se ouviu em antena a um director de um jornal económico, quando usava a expressão mercado criativo… a juntar a todas as outras virtudes que já lhe ouvi atribuir ao mercado.

Parece haver gerações que necessitam desesperadamente de criar ícones, de deificar algo, de lhes atribuir virtudes e poderes sobrenaturais. A do Dr. Salazar tinha A Nação. Escrevia-se e discursava-se Tudo pela Nação, nada contra A Nação. A actual parece venerar O Mercado.

Como a História parece repetir-se, e as gerações, às vezes, parecem nada querer aprender com Ela, poderia ser salutar se a geração do Dr. Salazar pudesse mostrar à actual, através da Grande Depressão dos anos 30, o lado menos entusiasmante de O Mercado